Os bons meninos – por Osvaldo Alvarenga*

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Faz muitos anos, foi no século passado, um amigo me contou como descobriu que estava velho. Caminhava, com tempo de sobra, para um compromisso quando viu, distante, parada no ponto de ônibus, uma mulher que parecia interessante. Resolveu esperar um ônibus também. Mais próximo, observou que a moça era nova e realmente linda. Junto dela, uma criança, um menino de no máximo cinco anos. Malandro veio – palavras dele –, sabia que era só agradar o filho para quebrar o gelo com a mãe. Parou e fez qualquer coisa que chamou a atenção do garoto. Puxou conversa e, logo, falava com ela. Conversa de cerca-lourenço, lógico. Segundo me disse, quando estavam quase íntimos, um ônibus virou a esquina, a moça puxou o menino para junto de si, fez sinal para o motorista e, antes de entrar, já com o filho no colo, educou-o: Juninho, dá um tchau pro vovô.

Outro amigo, também dessa época, contou-me que, uma vez, sentado com colegas à mesa de um bar, observou, duas mesas adiante, uma moça vistosa que, sorridente, não tirava os olhos dele. A primeira reação foi olhar para trás e ver se havia ali alguém que pudesse despertar o interesse da garota. Não havia. Atrás, só a passagem para o banheiro e o balcão. Ela estava mesmo olhando para ele. Conferiu mais uma vez. Comentou com os colegas: é profissional; respondeu um. Mas não tem cara de puta; disse o outro. Ele não achou que fosse. Bolas, a moça estava interessada. Ficou surpreso, mas não achou estranho, afinal, vai saber… Deu um golão no terceiro ou quarto chope que puseram à sua frente e disse baixo, quase que só para ele mesmo: então, sou um homem ou um rato? Levantou-se. Pediu licença aos colegas e, valente, caminhou em direção à moça. Ainda distante, não podia ver o semblante dela. Nem pensar em pôr os óculos nessa hora. Mais perto: tem a idade da minha filha; pensou. As outras meninas também eram jovens. Dava para ver: não são putas… foi pensando. A dois metros, a moça levantou-se: é muito gostosa, não é possível, é comigo mesmo? Duvidou. Estava eufórico e, também, inseguro. Houve um segundo de hesitação. Deu mais um passo à frente, e a garota avançou o rosto para um beijinho: oi tio Roberto, pensei que o senhor não estava me reconhecendo…

Lembro de muitas outras histórias assim. É que, dos 32 aos 41, trabalhei próximo de homens mais velhos; colegas entre quinze e vinte e tal anos mais que eu. Eles me tratavam como o caçula do grupo e gostavam de me prevenir sobre o futuro. Zombavam de si mesmos e reclamavam dos inconvenientes da idade madura. Contavam sobre as desilusões com o corpo, os desencontros com as mulheres, a descoberta da maturidade com suas frustrações e inseguranças. Isso, quando estávamos bem, em conversas descontraídas sem as pressões e rixas do trabalho. Boas conversas. Tenho hoje a idade que eles tinham naquela época. Ainda que me negue a reconhecer, todos os dias ao espelho, enquanto faço a barba, enfrento essa dura realidade. Não quero pensar nos anos que passam cada vez mais rápido. Sou um negacionista do tempo. Mas esta semana eu tive a prova cabal. Tornei-me um senhor. Já vamos lá. Antes um esclarecimento.

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Moramos num prédio pequeno. São os chamados “gaioleiros”, construídos à farta para atender a demanda por moradia, em Lisboa, entre o final do séc. XIX e meados do séc. XX. O nome é depreciativo. São edificações que perderam as características e o rigor dos “gaiolas”, projetados após o terremoto de 1755 para suportar grandes sismos. Passados os anos, esquecida a tragédia e, como a cidade crescia e faltava teto, alguém resolveu simplificar o projeto e baratear a obra. A moda pegou. Os “gaioleiros” têm as paredes mestras, externas, geralmente feitas de pedras rijas, muito grossas, resistentes, que sustentam o edifício; as paredes de empena, laterais, sem aberturas, geralmente feitas de tijolos, unem prédios contíguos; e as paredes internas, de tabique, muito finas, pouco resistentes e quase sem isolamento acústico. Não há laje a separar os andares que são pavimentos de madeira, presos às paredes por barrotes, com um pequeno vão entre um andar e outro e, também, praticamente sem isolamento acústico. Nós vivemos no último piso de um prédio assim. Quatro andares, mais o rés-do-chão. Dez apartamentos no total. Cá no alto, vivemos sós quase o ano todo. Meus vizinhos são franceses, e quase nunca estão em casa. Vêm para as férias de verão.

Este ano, por causa da pandemia, os vizinhos não vieram. Veio a filha. Ela com um grupo de amigos. Meninas e rapazes na casa dos vinte. Como é normal da idade, sozinhos no mundo, em noite de lua cheia, o Tejo prateado do luar, resolveram fazer a festa. E fizeram. Abriram todas as janelas, foram para a sacada, aumentaram o som – da música e das vozes –, riam, gritavam, pulavam, deixavam cair garrafas… Por sorte, o casal de velhinhos abaixo deles está fora. Até meia-noite, a intrusão – saber ocupado meu andar e dividida a lua – incomodou. Depois da uma da madrugada, o burburinho tirou-me a concentração na leitura. Às duas, sem dormir, ponderava com o travesseiro: são jovens, felizes com as férias, felizes com a liberdade… Quando chegou às três, ainda sem ter pregado os olhos, Iedinha também não, resistimos. Acendi a luz de cabeceira, tentei insistir com a leitura. Ela olhava as notícias no celular. A essa altura, talvez já bêbados, eles gritavam, batiam portas, riam muito, riam muitas vezes, riam e gritavam cada vez mais alto… Às quatro, acabou a consideração. Levantei-me e, como senhor que sou, emburrado, descalço e com as roupas de dormir, atravessei o corredor. Bati à porta dos vizinhos. Ouvi um corre-corre. Depois silêncio. Esperei. Nem um pio. Toquei novamente a campainha. Abriu a porta um rapaz louro, com o dobro do meu tamanho. Estava só. Do alto da minha maturidade, falei grosso: são quatro da manhã, tenham paciência, vocês não estão sozinhos no mundo, há gente precisando dormir, comportem-se… Coisas assim. Essas coisas que dizem os velhos rabugentos para os jovens. Ele, muito solícito, pediu desculpas, disse que não voltaria a acontecer. Respondi num resmungo: espero que não; ou talvez: acho bom. Não lembro o que eu disse, sei que voltei para a cama pesaroso.

Os vizinhos ainda estão por aqui. Nunca mais ouvi barulho vindo de lá. São bons meninos. E eu… Eu já não sou o mesmo.


*Osvaldo reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.

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