Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dá muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á; mas quem menospreza a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna.”
João 12, 24-25.
POR OSVALDO ALVARENGA
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Gosto de templos. Gosto deles vazios. Gosto da quietude, da luminosidade reduzida e, nas catedrais, tantas vezes, gosto do mosaico colorido de magníficos vitrais, dos afrescos e do cheiro a incenso. Em Lisboa, das igrejas que conheço, depois da de Santa Maria de Belém, no Mosteiro dos Jerónimos, e da Sé, seguida de perto pela Basílica da Estrela, é a de São Domingos, no largo de mesmo nome, na Baixa, aquela de que mais gosto. Por isso mesmo, motivo de visita sempre que recebo em casa alguém que pela primeira vez vem à cidade. No verão, às seis da tarde, com o sol ainda alto, o forte calor não faz supor a hora da missa. Foi precisamente quando chegamos à igreja de São Domingos num sábado desses.
Avancei nave adentro sem perceber que havia mais gente do que o de costume no interior da igreja, menos ainda vi as flores e a movimentação no presbitério nem reparei a toalha branca e as velas acesas sobre o altar. Como geralmente acontece quando entro ali, olhava para o alto arrebatado pela beleza do edifício. Aprendi com o pai, que aprendeu com o pai dele – excomungado que foi até a quarta geração pelo pároco de Santa Maria de Itabira, no interior de Minas Gerais –, a não gostar de missa, mas tenho profundo respeito pelas liturgias de todas as religiões, e não seria diferente com a Católica. Naquela hora, enquanto o padre entrava, eu de pé no meio da nave, para não estorvar, busquei a primeira cadeira e sentei-me. Iêda e Elaine, embaladas no meu passo, seguiram-me.
Na procissão, acompanhado de dois clérigos, o padre canta, quase solfeja, algo que não percebo. O sacerdote faz o sinal da cruz. Todos repetem. Seria santimônia minha imitar o gesto. Não faço; levanto-me à hora de levantar, sento-me à hora de sentar. Começa a ladainha; desconheço o roteiro, permaneço calado. Observo. Só há velhos à volta. Uns genufletem. Outros, mesmo apoiados em bengalas, genufletem. Eu, acompanho a maioria: fico de pé; e mudo, enquanto eles respondem ao padre naquela interação amestrada. Deixo frouxa a atenção. Penso que os católicos estão cada vez mais velhos, penso que os portugueses estão cada vez mais velhos, penso que também eu envelheci… Com simplicidade e erudição, o padre oferece-nos uma breve aula de história – ganha a minha atenção – e, em seguida, faz a primeira leitura: João 12, 24-25. Curta e objetiva. Desperta o meu interesse. Segue a cerimônia o seu curso, e eu volto aos meus pensamentos. Penso no mistério da ressureição, penso na parábola do grão de trigo e, divago, lembro-me da parábola do grão de mostarda, então, suscito o evangelho de Tomé e o pensamento corre longe: vai até os primórdios da Igreja para depois regressar às cruzadas, e, nessa cisma, volto a São Domingos, à história que conheço desta igreja…
Segundo Manuel Ferreira de Andrade (1910-1970), no número 88 do Boletim Olisipo, antigo periódico publicado pelo Grupo Amigos de Lisboa, a história de São Domingos, tudo indica, começa com el-rei D. Sancho II que, malquisto pelo Papa, por certos prelados e fidalgos nacionais, empenhado na conquista do Algarve aos mouros, para angariar apoios à sua cruzada, em 1241, mandou construir o convento destinado aos Frades Pregadores e, em fevereiro de 1242, com pompa e circunstância, lançau a pedra fundamental que desencadearia a obra. Deposto e sucedido pelo irmão mais moço, D. Afonso III, foi por mercê do novo rei que, em 1259, igreja e convento foram entregues aos Dominicanos.
Nosso olisipógrafo explica que, após o terremoto de 1755, o convento erguido junto à igreja foi sacrificado para abertura da rua D. Antão de Almada e da Travessa Nova de São Domingos e seu despojo integrado aos novos prédios da planta pombalina, no Rossio e na Travessa Nova de São Domingos. Não restam vestígios do primitivo edifício. Outro articulista da mesma gazeta, o Dr. Manuel Hermenegildo Lourinho (1891-1979), conta na edição de número 134, que paredes-meias com a igreja, no oriente dessa, e ligada a ela por uma larga janela que servia de tribuna, foi construída uma ermida, a de Nossa Senhora da Purificação; mais conhecida como a de Nossa Senhora da Escada – porque ficava acima do nível da rua e, para ascender à grejó, havia uma escada exterior com 16 degraus de pedra. Seus escombros terão chegado aos primeiros anos do séc. XIX quando foi limpado o terreno para a construção de um prédio. Pelo mapa mal riscado que vi, é aquele onde ficam o restaurante O Tábuas e o Pronto a Vestir G&L.
Mecânico, sigo a assembleia, sento e levanto. Terminado o hino, o silêncio para a oração me faz despertar. Mas é breve. O padre puxa o coro e toda a Igreja reza em voz alta. Rezar com palavras certas, não sei. Sigo calado. Amém! Então, ele apresenta o diácono ao seu lado. É quem fará a leitura do salmo. Que é longa e cansativa. Perco-me outra vez. Admiro o prédio e volto à sua cronologia. Desde a fundação, o templo de São Domingos está intimamente ligado à história de Portugal. Após resistir ao cerco de Lisboa, entre maio e setembro de 1384, foi numa missa aqui que D. João, o Mestre de Avis, fez a convocação para as Cortes de Coimbra, realizadas em março do ano seguinte, onde ele foi eleito rei de Portugal; também neste santuário, em abril de 1506, a missa-rastilho que rebentou em massacre com milhares de cristãos-novos, homens e mulheres, velhos e crianças, espancados, mortos e queimados, dentro e fora da igreja, nas ruas e praças, por três dias seguidos, a fúria alucinante espalhou-se pela cidade; e depois, a partir de 1536 e por longos 285 anos, com a inquisição, era daqui que partiam para a fogueira, em procissão até o Rossio, os condenados pelo Santo Ofício; após a Revolução Liberal, em março de 1821, nesta nave foi realizada a cerimônia de juramento das Bases da Constituição; e a partir daí, os casamentos de D. Pedro V (1853) e de D. Luís I (1862), e o batismo de D. Carlos (1863) e, por fim, o seu casamento, em 1886, o último rei a casar-se diante deste altar.
Em mais de sete séculos de história, a igreja está onde sempre esteve. Mas, sim, foi muitas e muitas vezes modificada: remodelações, ampliações e reconstruções; seja em razão de régias vontades, das cheias frequentes nas primeiras centúrias do convento, dos terremotos – sobretudo os de 1531 e 1755 que exigiram completa reconstrução, mas obras também foram feitas após os abalos de 1704 e 1724 – e do fogo. Em 13 de agosto de 1959, o último grande desastre, terrível incêndio, só restaram paredes e piso e, quase intactos, fachada, sacristia e claustro. Em 1994, a igreja foi reaberta aos fiéis; é esta que eu contemplo agora: a ampla nave, o teto de imponente abóbada em degradê ocre-magenta até às paredes lisas, matiz contemporâneo a ressaltar o conjunto de colunas duplas, de 200 anos, de mármore negro, ostensivamente danificado, lascado, estigmatizado pelas labaredas, marcado pelo tempo, a sobressair baço sobre o fundo rosado; do cinza altar suportado por pilares do mesmo mármore negro machucado, a peça dourada, evocação de antigas talhas, desponta do nebuloso fundo, e, adiante, o grande crucifixo de madeira, sem o Cristo, sobre o piso de mármore travertino, abrasado e partido, feito passarela ao longo da nave, e, ao chão, modestas cadeiras sobre arcaico piso de pedra onde senhoras e senhores, ainda de joelhos, continuam a rezar.
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