A prática do overbooking no setor de aviação civil tem se mostrado uma fonte recorrente de controvérsias entre as companhias aéreas e os consumidores. Consiste, em síntese, na venda de passagens aéreas em quantidade superior à capacidade de assentos disponíveis na aeronave, fundamentando-se no índice histórico de passageiros que não comparecem ao embarque (os chamados no-show).
por Marianne Neiva dos Santos*
Embora tal prática possa ser justificada sob o viés econômico, visando à redução de prejuízos empresariais, gera violação direta aos direitos dos consumidores, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e na Resolução nº 400 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
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Historicamente, as companhias aéreas adotaram o overbooking como uma estratégia para maximizar a ocupação dos voos e compensar as perdas financeiras causadas pelo não comparecimento de passageiros previamente confirmados. Essa prática, contudo, acarreta transtornos significativos quando o número de passageiros que se apresentam para o embarque excede a quantidade de assentos disponíveis, forçando a empresa a preterir consumidores, o que caracteriza inadimplemento contratual.
Do ponto de vista jurídico, o overbooking configura uma falha na prestação de serviço, uma vez que a empresa aérea se compromete, mediante a venda do bilhete, a realizar o transporte do passageiro nas condições pactuadas. Assim, a negativa de embarque sem justificativa plausível coloca a companhia em descumprimento contratual, ensejando o dever de reparar os danos causados ao consumidor, tanto no plano material quanto moral.
Proteção ao consumidor
O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1990, constitui o principal instrumento de proteção dos direitos dos passageiros em situações de overbooking. O artigo 39, inciso II, do CDC, proíbe expressamente o fornecedor de recusar atendimento ao consumidor, quando há oferta de produtos ou serviços. No contexto do transporte aéreo, tal dispositivo se aplica diretamente ao overbooking, visto que a empresa aérea, ao vender o bilhete, assume o compromisso de prestar o serviço de transporte no horário e nas condições acordadas.
Além disso, o artigo 20 do CDC estabelece que os serviços devem ser prestados de forma adequada e eficiente. Quando a companhia aérea impede o embarque de um passageiro, viola o princípio da execução adequada do contrato, configurando uma falha objetiva na prestação do serviço. A responsabilidade civil da empresa aérea, nesses casos, é objetiva, conforme previsto no artigo 14 do CDC, o que significa que a companhia responde pelos danos causados, independentemente de culpa.
A Resolução nº 400 da Anac, que regulamenta o transporte aéreo no Brasil, assegura uma série de direitos aos passageiros preteridos em casos de overbooking. Entre eles, destacam-se:
1. Reacomodação: o passageiro deve ser reacomodado em outro voo da mesma companhia ou de outra, sem qualquer custo adicional.
2. Reembolso integral: o passageiro pode optar pela restituição imediata do valor pago pela passagem, incluindo taxas aeroportuárias.
3. Execução do serviço por outro meio de transporte: caso aplicável, a empresa aérea pode providenciar a execução do transporte por outra modalidade, como rodoviário ou automotivo.
4. Assistência material: dependendo do tempo de espera, a companhia deve oferecer alimentação, hospedagem e transporte até o local de acomodação.
Jurisprudência do STJ
Esses direitos são reforçados pela jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, que reconhece a responsabilidade objetiva das companhias aéreas por danos materiais e morais decorrentes da preterição injustificada de passageiros.
O entendimento dos tribunais superiores, especialmente do STJ, tem sido categórico ao afirmar que o overbooking configura falha na prestação do serviço, ensejando a reparação integral dos danos sofridos pelo passageiro. No julgamento do REsp 598.076/SP, o STJ estabeleceu que a preterição de embarque em razão do overbooking constitui inadimplemento contratual, justificando a condenação da empresa aérea ao pagamento de indenização por danos morais. O tribunal destacou que o dano moral, nesses casos, é presumido, uma vez que o simples impedimento ao embarque configura ofensa à dignidade e à expectativa legítima do consumidor.
Em outro importante precedente, o AREsp 893.742/RJ, o STJ reforçou o entendimento de que a prática de overbooking gera a responsabilidade da companhia aérea por danos morais, independentemente da existência de danos materiais expressivos. O tribunal concluiu que o abalo emocional e os transtornos decorrentes da preterição injustificada do passageiro são suficientes para caracterizar a violação de seus direitos, justificando a reparação moral.
A jurisprudência brasileira é uníssona em reconhecer o direito à indenização por danos materiais e morais em casos de overbooking. O artigo 737 do Código Civil impõe ao transportador o dever de conduzir o passageiro ao destino final, conforme pactuado no bilhete de passagem. O descumprimento dessa obrigação, seja por overbooking ou qualquer outra razão, gera o dever de reparar os danos causados ao consumidor.
Embora o overbooking seja uma prática economicamente justificada sob a perspectiva das companhias aéreas, seu uso indiscriminado viola os direitos dos consumidores, conforme disposto no Código de Defesa do Consumidor e na Resolução nº 400 da Anac.
Indenização devido aos transtornos
O STJ tem fixado indenizações expressivas em casos de overbooking, considerando a gravidade do abalo emocional, os transtornos decorrentes da perda de compromissos e o sofrimento psicológico causado ao passageiro. No julgamento do REsp 1.510.169/SP, o tribunal decidiu que o overbooking, por configurar falha grave na prestação de serviço, deve ensejar a reparação integral ao consumidor, inclusive por danos morais, dada a frustração e o desconforto causados pela negativa de embarque.
Embora o overbooking seja uma prática economicamente justificada sob a perspectiva das companhias aéreas, seu uso indiscriminado viola os direitos dos consumidores, conforme disposto no Código de Defesa do Consumidor e na Resolução nº 400 da Anac. O consumidor, quando preterido, tem o direito de exigir a reacomodação imediata, o reembolso integral ou a indenização por danos materiais e morais, e as companhias aéreas devem responder integralmente pelos prejuízos causados.
A jurisprudência pátria tem sido firme em condenar essa prática, impondo às empresas aéreas o dever de reparar os danos sofridos pelos passageiros, tanto em termos financeiros quanto psicológicos. Assim, é imprescindível que os consumidores conheçam seus direitos e não hesitem em buscar as compensações devidas quando se depararem com situações de overbooking. (Artigo publicado originalmente no Conjur, e gentilmente cedido pela autora para publicação no DT)
*Marianne Neiva dos Santos é advogada, especialista em Direito do Consumidor e Recursos para Tribunais Superiores do escritório Jorge Advogados Associados.