Quando entrar setembro – por Paulo Atzingen*

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RETRÔ 2018 – Publicado dia 1º de setembro

Quando entrar setembro quero estar em Santiago do Chile e sentir a última brisa do inverno tocar o meu rosto. Quando entrar setembro quero sentir os primeiros sopros da primavera e andar pelas ruas de Pablo Neruda. Quero ouvir canções que me elevem à altura do Aconcágua.

Quando entrar setembro quero entender essa pororoca que me transformei carregando em uma só mente e um só coração letras e músicas, poemas e versos do mineiro Beto Guedes e do poeta chileno.
Este sol de quase primavera nas ruas de Santiago guia-me através de um rastro que deixei no passado. “Tudo o que move é sagrado e remove as montanhas com todo o cuidado”.

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Vejo as cordilheiras e removo-as com o cuidado de um amante das letras. Sobre elas salpico várias pitadas de neve eterna e puxo o sol de primavera para iluminá-las à tardinha.

Se antes, ligava as letras das canções e as páginas de Neruda a um amor específico ou uma paixão exclusiva com prazo de validade, hoje, esta mesma poesia musicada preenche-me a mente como um vinho chileno tomado a oito mil metros de altura sobre a cordilheira. Duas lágrimas saem à luz.

Emociono-me pelo conjunto, pela somatória. As obras lidas e ouvidas, a depuração do tempo e o momento presente formam um todo indissolúvel.

Olho para a cordilheira que rasga o Chile de fora a fora e sei que ela empurrou para o mar a areia e puxou para si as terras férteis que produzem uva e vinho. Tenho a leve impressão que para atingir esse prazer final da degustação de um cabernet, de um merlot, foi necessário a brutalidade da montanha.

Se a leveza e a juventude dos mineiros me deram combustível para uma iniciação lirica, a profundidade de Neruda me deu pólvora para entender as duas Américas. A primeira sentada sobre o sonho de se dar bem, ficar rica, investir na bolsa e ter um futuro antisséptico. A segunda atrelada a um passado impregnado de apropriações indébitas, saques, força bruta, sentimento e busca de dignidade.

Foram os versos de Neruda que me disseram pela primeira vez sobre os trabalhadores das minas de cobre do Atacama escravizados pela economia de mercado ainda na década de 70. Foram os versos de Neruda que me falaram sobre os pescadores fisgados pela baleeira assassina multinacional. Foram pelos versos de Neruda, em seu Canto Geral, que ouvi pela primeira vez o termo campesino e ao invés de endurecer-me, não perdi a ternura.

Mas também foram os versos de Neruda que me trouxeram mais uma vez a Santiago do Chile, com seu sol de quase primavera. Absorvo essa síntese de minha própria vida, passado e presente se entrelaçam, nessa dança incessante de estações, estados de espírito e lições para aprender ou para saber de cor.

Removerei as cordilheiras com todo o cuidado e me alimentarei de horizontes.

Santiago, 31 de agosto de 2018.

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