Que tal um café? – por Glaucia Machado*

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Sou compositora e como tal, meus pensamentos e raciocínios acontecem como na mente de qualquer outro artista: o simples, o cotidiano, o trivial são inspiradores. Ela surge na mente do artista desencadeando a urgência. Não uma urgência qualquer, A urgência! Talvez seja redundante dizer que a urgência do artista é inadiável! Parar tudo para escrever, compor, desenhar… o artista tem a urgência em criar.

Pela necessidade mudei-me com a família para uma chácara no interior. Desliguei-me de um emprego que amava para arriscar-me numa aventura cheia de altos e baixos. E essa aventura tem me aperfeiçoado como ser humano.

Plantei hortaliças, reguei a terra e as tão amadas borboletas vieram me visitar. Trouxeram seus ovos, os ovos se transformaram em lagartas famintas e destruidoras das minhas hortaliças… mas como matá-las? Não pude. Adaptei um vidro em borboletário que alimentei e protegi, e que, em poucos dias, estava cheio de borboletas. Soltei-as no jardim. Senti uma emoção única! Sei que elas voltarão e este é meu desejo. A vida é um ciclo.

Foi nesta terra simples que experimentei sabores novos. A couve manteiga com gosto de manteiga, a alface roxa, refrescante e deliciosa, a pitanga, o abacate e a chuva de mangas. Sim! Tantas mangas que caem como chuva de galhos robustos, curvados, pesados e carregados.

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Foi então que ganhei um punhado de grãos de café. Coloquei para secar durante muito tempo. Dia após dia, pacientemente esperei que secassem. Depois, descasquei, sentindo o óleo grudar nas mãos e o aroma… Ah! Os aromas! Até chegar na mesa o café passa por muitas fases e em cada uma tem seu aroma. O cheiro do café seco pelo sol, alguns grãos oleosos e cheirosos, o aroma da torra. Fiz uma incrível descoberta: o cheiro inconfundível de café torrado só é liberado depois de algum tempo no fogo. Isso é óbvio para quem está acostumado com o processo, mas não para mim. A mistura dos cheiros da fumaça da lenha e do café levou-me a memórias não vividas, se isso é possível. Uma memória social. Chamei meus filhos, triturei os grãos e preparei o expresso. Não consigo descrever em palavras a sensação de degustá-lo. Todo o processo estava completo: História, tradição e memória numa xícara de café.

Não sei se pela idade, pela condição pandêmica, pelas mudanças que me aconteceram nos últimos meses, se pela perda de amigos, pela fragilidade da saúde de quem amo, o fato é que houve transformações significativas em minha vida, em meus pensamentos e devaneios, interferindo em meus sonhos.

Deitada na madrugada, ouço o apito do trem. Uma quietude e segurança permeiam minha mente. Reflito: o presente é divino!

Lembro-me chorosa daqueles que se foram. Amados do fundo da alma com amor fraternal, amor de saudade, amor e certeza de reencontro. O sol nem surgiu e sinto uma urgência em me levantar para saborear, vislumbrar e viver.

De tarde, enquanto tomo o café, penso na vida. Momentos e sabores distintos. Nem sempre gostosos. Às vezes amargos e incertos causando insegurança, angústia e dor. Outras vezes doces e festivos como o mel.

Meus sentidos, agora mais aguçados do que nunca, me fazem desejar sempre mais. Cada mordida numa fruta ou numa hortaliça, cada vislumbre do pôr do sol, do pássaro que pousa no muro, na árvore, na vasilha de água que cuidadosamente limpamos e trocamos diariamente e especialmente para eles; o observar cuidadoso e distante do andar aparentemente desengonçado do lagarto que, no final da tarde usa meu terreno como passagem ou do ninho em cima da varanda que sempre tem um “inquilino” diferente e o sentir dos cheiros das flores que se transformarão em frutas.

Isso! Quero sentir todos os cheiros que sejam possíveis, abraçar árvores, falar com elas, falar com os bichos e contemplar! Nada mais é tão urgente do que a vida! Com sua simplicidade e riquezas diárias. E descubro neste mundo rico e belo que a minha urgência em criar está ligada à gratidão pela vida. Criar é viver!

Engulo mais um gole quente e gostoso sorrindo para vida. E você? Que tal um café?


*Glaucia Machado é professora de música, artista plástica e criadora do canal no youtube Chapéu Mágico

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