Santos e Sardinhas – Crônica de Osvaldo Alvarenga*

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Santo Antônio de Pádua, Santo Antônio de Lisboa. Nascido Fernando, às portas da cidade, quase moura, que inda não era capital. Feito frei, foi para Coimbra. Formou-se teólogo. Místico, praticante das regras de Agostinho de Hipona, comoveu-se com o martírio do Frades Menores em Marrocos, tornou-se ele também um frade menor. Orador notável, evangelizador, correu mundo pregando a fé em Jesus Cristo: Marraquexe, Catânia, Assis – onde rendeu-se a Francisco –, depois Montepaolo, Bolonha, Toulouse, Montpellier, Limoges, Roma, Assis e, finalmente, Pádua; onde morreu, em 13 de junho, antes dos quarenta, no mosteiro que fundou. Não passou um ano, por tantas penitências e imensos milagres, foi canonizado pelo Papa Gregório IX.     

João, o misericordioso; Baptista pela submersão que faz renascer os gentios. Filho único e extemporâneo do sacerdote Zacarias e de Isabel, prima de Maria, nasceu no solstício de verão. Ascético, como Zaratustra, viveu isolado no deserto até os trinta. Veemente, às margens do rio Jordão, pregou a remissão e angariou discípulos. Profeta, vaticinou a chegada do Salvador e, embora requeresse o inverso, a Ele batizou. Mártir, pela devassidão e instabilidade de um rei, foi decapitado e sua cabeça entregue na bandeja à sobrinha sedutora; filha da amante do monarca. Não há registro do processo de canonização do dito misericordioso, tampouco milagres atribuídos ao homem, nem por isso é santo menos estimado.

Simão de Betsaida, pescador em Cafarnaum, o mais ardoroso apóstolo, o primeiro a reconhecer em Jesus o Cristo – “o Filho do Deus vivo” –, foi a pedra angular da Igreja e o primeiro Bispo de Roma. Conhecido por Pedro, o pescador de homens, espalhou a Palavra e fez sucessores. Condenado à cruz sob o império de Nero, resignado, creu em tudo indigno da mesma sorte de seu Mestre: pediu e cumpriu de ponta-cabeça o seu martírio. Celebrado no dia de Rômulo e Remo, é conhecido por todos como o mandachuva dos céus, o santo que decide quem entra ou fica fora do Reino de Deus.  

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São os três santos das celebrações de junho, do pagão solstício de verão à tradição cristã de afago aos beatificados; as festas mais populares em todo Portugal e além. Tudo porque os sucessores de Pedro trataram de incorporar à Igreja as tradições de outros povos. Muito antes de existirem os santos, existiam as festas de junho: do triunfo da luz sobre a escuridão, de exaltação à juventude, dos cultos à fertilidade e das súplicas aos deuses por melhores colheitas. Os celtas ibéricos já acendiam fogueiras, faziam brincadeiras e giravam em torno dum grande mastro. No Século VI, os germânicos trouxeram para a festa as vestes simples, símbolo do trabalho no campo, e as danças em pares em volta das fogueiras. Com os séculos, os devotos acrescentaram as bandeiras para os santos e as romarias, os párocos as quermesses, as procissões e as missas. Em Lisboa, todo junho é mês de festa. Nenhum santo é esquecido, mas a noite de Santo Antônio é especial. Em cada paróquia, nos largos, em várias praças, em tantas ruas, são montados os arraiais com seus altares, bailaricos e muitas grelhas abarrotadas de sardinhas sobre a brasa. 

As sardinhas são daqui mesmo. Do Atlântico aqui na frente, a parte molhada de Portugal. Primas da anchova, do carapau e do arenque, sempre estiveram aqui. Os fenícios já apreciavam o pescado. Os romanos também. Tanto que construíram em Troia o maior parque industrial de transformação de peixe de todo o império. Misturada ao sangue e às vísceras do atum, ou da cavala, e mais a certos crustáceos e uns moluscos esmagados, deixada por meses em salmoura, fazia o garo, fino condimento, dito de Afrodite, para deleite dos césares, ou simplesmente defumada, ou salgada, a sardinha portuguesa viajava em ânforas de barro até Roma. Rica em ômega 3, ainda magra em abril, sabe melhor no auge do verão. Assada na brasa, sal grosso e nada mais; com salada de alface, tomate e pimentão – que assou junto – e batatas cozidas, é uma das sete maravilhas da culinária portuguesa (o bacalhau ficou de fora). Deitada sobre a fatia de pão, reina absoluta nos Santos Populares. São as primeiras levas. É quando toda Lisboa cheira a sardinha.  

Por precaução, as autoridades cancelaram os Santos Populares deste ano. Resignados ao vírus, Santo Antônio, São João e São Pedro acautelaram-se. Festas de junho este ano não há; foram adiadas para 2021. Falta clima. Faltam certezas. Pena imensa. Para mim, menos pelas marchas populares, os altares do santo citadino, muito menos pela multidão nos arraiais e bailaricos, mais pela falta das sardinhas espalhadas por toda a cidade, muito mais pelo cheiro que eu adoro, talvez, porque me remete à… Lisboa. Hoje sou pura nostalgia. 



*Osvaldo reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.

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