A segunda onda  – por Osvaldo Alvarenga*

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“A miséria de uma criança interessa a uma mãe, a miséria de um rapaz interessa a uma rapariga, a miséria de um velho não interessa a ninguém.” – Victor Hugo

Já era esperado, a Europa enfrenta a segunda onda de contágio pelo Novo Coronavírus. Desde setembro, os números de casos são ascendentes e, agora, novos recordes de infecção são batidos todos os dias. Em países como a República Checa, Bélgica, Holanda, Reino Unido, Irlanda, Suécia, Alemanha, Itália, França, Espanha e, claro, Portugal, mais ou menos restritivas, as medidas de prevenção para evitar o colapso do sistema de saúde vão sendo anunciadas. Voltamos às dúvidas do início da pandemia: quando será o pico das internações? O sistema de saúde está preparado para receber todos os doentes? As medidas adotadas para reduzir o contágio são suficientes? São as mais adequadas para proteger da morte e do desemprego o maior número de pessoas? Não são questões fáceis, mas, depois de sete meses de angústia, eu esperava melhores respostas do governo português.

No iniciozinho de março, quando os primeiros casos foram confirmados em Portugal, o governo vacilou um pouco, mas, dez dias depois, declarou o estado de alerta, e, em seguida, fechamento de escolas e adoção de medidas severas de confinamento. Ninguém negou o perigo da doença. Não houve politização da pandemia. Não houve aposta em soluções milagrosas. Governo e oposição mantiveram o mesmo discurso, a imprensa ajudou, a população assimilou bem as regras de isolamento e higienização, e o avanço do contágio foi controlado. Evidência de boa gestão da crise sanitária na primeira onda é o fato de que, em Portugal, não tivemos filas nos hospitais para o tratamento da Covid-19. Não passamos aqui pelo mesmo desespero que vimos os italianos, os espanhóis e mesmo os franceses passarem por falta de leitos. Nesses países, o contágio evoluiu muito rápido, e foram sentidas as consequências mais cedo e mais profundamente do que aqui.

Governo geriu bem

Antes desta segunda onda começar a crescer, em meados de setembro, Portugal havia perdido, oficialmente, 1.860 pessoas para a Covid-19. Um rácio de 18 vítimas para cada cem mil habitantes. Quando olho para a Suécia, país que, acusado de exterminar seus aposentados, havia adotado medidas bastantes suaves no combate ao vírus – está mudando –, e cuja população é apenas um pouco menor que a portuguesa, ainda que muitíssimo mais rico e vasto, lá, no mesmo período, registravam 64 mortes para cada cem mil. Portugal poupava 3,5 vezes mais vidas. Por questões óbvias, olho os números da Espanha que computavam 65 falecimentos por cem mil. São dados que reforçam a ideia do acerto português até aquele momento. Apesar de erros pontuais, sobretudo, a meu ver, a abertura antecipada em junho, é razoável dizer que o governo geriu bem a crise sanitária.

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No plano econômico foram anunciados programas de apoio às empresas e aos trabalhadores. Esses, pelo que leio e ouço, ainda deixam a desejar. O país tem uma economia bastante dependente do turismo, e sofre com as restrições de viagens internacionais. É também, em parte, subordinado à economia da vizinha ibérica. O que acontece lá, reflete aqui. Segundo o FMI, o PIB português deve encolher 10% em 2020, e recuperar 6,5% em 2021. Na Espanha, cuja economia é mais diversificada, mas, também, onde o turismo tem grande importância, o FMI prevê queda de 12,8% em 2020 e uma recuperação de 7,2% no próximo ano. Voltando ao contraponto sueco, cuja economia é baseada na exportação de bens de capital, automóveis, sistemas de telecomunicações, medicamentos, enfim, um país onde o turismo tem pouca relevância, a previsão do FMI é queda de 4,7% este ano, com recuperação de 3,5% em 2021.

Não é uma corrida

Difícil fazer comparações e dizer que este ou aquele caminho é o certo. Tudo é muito recente e, se fosse uma corrida entre países, ainda vamos longe do fim; sem contar que os concorrentes competem em condições muito desiguais. Não é uma corrida. Não deve haver competição, ao contrário, quanto mais colaboração houver, mais fortes sairemos todos desta crise. Não é hora de impor tabus. Não há também porque negar os fatos, politizar as soluções nem trocar terapia por ideologia; ou ainda pior, negar recursos por hipocrisia. Não é hora de priorizar as eleições.

Não deve haver competição, ao contrário, quanto mais colaboração houver, mais fortes sairemos todos desta crise

Este mês, o país ultrapassou a marca dos 2.000 casos diários de novas infecções. São agora 2.343 mortes atribuídas à Covid-19; 23 para cada cem mil habitantes. A marca realça a hesitação do governo e a incoerência das medidas anunciadas para fazer frente ao crescimento acelerado do contágio nesta segunda onda. Informação mantida em segredo até muito recentemente, retirada a fórceps da Direção-Geral da Saúde, revela que até 20 de outubro, das vítimas contabilizadas por Sars-Cov-2, 87% tinham 70 ou mais anos de idade; porém, esse grupo etário representa somente 16% da população. Isso quer dizer que, em Portugal, estão morrendo 35 vezes mais idosos do que o restante da população. O que faz supor a adoção de outro plano de ação para conter o avanço do vírus. Faz supor, também, extravio na estratégia portuguesa de combate à pandemia, e insinua dissimulação nas decisões do governo. Por fim, sugere imenso descaso da sociedade portuguesa em relação aos seus velhos.

E, tudo indica, o mal é muito maior. Sabemos que há subnotificações no número de contágios e, consequentemente, no número de vítimas desse vírus. Tem sido assim, por falta de testes, na maioria dos países. Aqui melhorou muito. São feitos dez vezes mais exames agora do que na primavera; quando os poucos feitos foram direcionados aos profissionais de saúde e aos doentes sintomáticos que acorriam aos hospitais. Relativamente pouca gente.

Mortes em casa

Suspeitávamos que muitos morressem em casa, sem tratamento nem testes; uns doentes de Covid-19, outros pelo efeito colateral da pandemia. Não imaginávamos que fossem tantos. O Instituto Nacional de Estatística tornou público que entre março e setembro, morreram em Portugal 7.144 mais pessoas do que a média para o mesmo período nos últimos cinco anos. Desse total, apenas 26% foram identificadas como vítimas da Sars-Cov-2. E mais, o levantamento revelou que – quanta coincidência – 87% das vítimas tinham mais de 75 anos. Muitos morreram pela má gestão no Serviço Nacional de Saúde. Muitos morreram pelo receio de ir buscar ajuda médica. Uma enormidade de anciãos morreu reclusa, desprotegida e indefesa nos lares de idosos.

Que veto é este que faz o governo calar-se sobre os dados que conhece ou que deveria conhecer? Que embaraço é este que impede as autoridades de saúde de revisar a estratégia de combate ao vírus e não usar todos os recursos à mão para salvar mais vidas? Que miopia é esta que embaralha a vista de autoridades e cidadãos diante da insuficiência de socorro aos mais velhos, e da carência de fiscalização e de controle dos lares? Os velhos não têm sindicatos a lutar por eles, não têm partidos que os defendam, não têm sequer filhos e netos dispostos a usar uma simples máscara para protegê-los.

No assombro da primeira onda, Portugal soube reagir. As autoridades de saúde não mostram agora a mesma competência. Passados oito meses de crise, todo o verão para planejar o inverno, o governo não fez o dever de casa. Anda batendo cabeças. Aqui no meu mundinho, Iêda e eu aqui em casa, voltamos ao confinamento dos primeiros meses. Em novembro viajamos para o Brasil. Vamos para Coluna, no interior de Minas Gerais, passar algumas semanas com a Dona Iaiá, minha sogra. Ela está muito bem e feliz com a nossa visita. Não seremos nós a levar esse miasma para dentro da casa dela.


 

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