Às vezes, a viagem começa pelo hotel. Uma boa oferta, no momento exato, é o que basta. Escolhida a zona — a definição do roteiro, aonde ir, o que ver e o que fazer —, vem na sequência. Escolhido o sítio, se uma Pousada de Portugal em Covilhã, qual a programação possível? Leio a respeito. A Beira Baixa e a Beira Interior: as rotas do vinho e do azeite; as serras da Marofa, da Malcata e da Estrela; os rios Mondego, Côa e Zêzere; o queijo mais famoso e tanta paisagem: montanhas, planaltos e outeiros; escarpas, encostas, socalcos e vales; pastoreio, vergel e rochas nuas, soltas, imensas; o clima é agreste. Agora, calor, calor tórrido, secume; frio, chuva e neve no inverno. As aldeias históricas, as vilas de pedra, as casas de xisto, as construções em granito: muralhas, torres e castelos, vilas inteiras, praças-fortes raianas, linhas de defesa do reino; os burgos medievais e suas judiarias. Ah, as judiarias medievais! É pra lá que eu vou.
As aldeias históricas, as vilas de pedra, as casas de xisto, as construções em granito: muralhas, torres e castelos, vilas inteiras, praças-fortes raianas, linhas de defesa do reino; os burgos medievais e suas judiarias. Ah, as judiarias medievais! É pra lá que eu vou.
Hispania, nome dado pelos romanos à Península Ibérica, tem, provavelmente tem, origem hebraica; ou fenícia: costa ou ilha escarpada, costa ou ilha dos coelhos ou, ainda, costa ou ilha dos metais. Parece que antropólogos e filólogos não encontraram a tradução exata. Contudo, parece não haver dúvidas sobre a chegada do povo de Israel à Península Ibérica, muito anterior à invasão romana. Provavelmente vieram, em tempos imemoriais, com os fenícios e, a partir do séc. VII a.C, fixaram-se com os cartagineses — filhos dos fenícios, casados com berberes, conquistadores do Mediterrâneo e exploradores das minas de prata, estanho, cobre e ouro ao norte do Golfo de Cádis; dominaram da Tunísia à Andaluzia, da Córsega ao litoral do Marrocos —, vencidos pelos romanos em guerras que duraram mais de um século, o mar-interior mudou de dono. Os cartagineses foram dizimados em 146 a.C. Uns tantos remanescentes dessa guerra, púnicos e semitas, talvez, misturados aos lusitanos locais, tenham resistido pouco mais às legiões romanas e, com os séculos, tornaram-se um só povo.
Duzentos anos depois, no ano 70 desta era, Jerusalém caiu sob as tropas de Tito, filho de Vespasiano, lugar-tenente de Roma na Judéia. Deu-se a segunda diáspora do povo de Israel, o primeiro grande êxodo hebreu para a Península Ibérica; nasciam os sefarditas. Sobreviveram aos cristãos romanos, resistiram aos bárbaros cristãos, conviveram em liberdade com os mulçumanos e, depois, com a reconquista cristã, voltaram as perseguições. Nos reinos das Astúrias, Leão, Castela, Aragão e Navarra, ataques, impugnações, coações, conversões forçadas, inquisição, até, finalmente, a expulsão pelos Reis Católicos, em 1492, logo após a conquista aos mouros de Granada. A maioria converteu-se. Os demais espalharam-se pelo mundo, foram para junto dos mulçumanos no Magrebe, na Península Grega, nos Balcãs e em Constantinopla. Foram também para a Península Itálica e, sobretudo, para o Reino de Portugal e dos Algarves.
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Muitíssimo antes desses, outros hebreus consideraram esta finisterra ocidental, à beira do Atlântico, a sua casa. É o que provam as inscrições, do séc. IV, encontradas em túmulos, no sul de Portugal. Desde a fundação, em 1128, até a grande migração de 1492, os soberanos portugueses foram tolerantes o bastante para atrair e manter os sefarditas no reino. Havia leis para protegê-los. Exemplo de isonomia: os judeus podiam possuir escravos cristãos; de liberdade: não eram obrigados a usar distintivos; de privilégio: não pagavam dízimo à Igreja; pagavam, sim, outros tributos à Coroa.
Na conquista das cidades mouras, D. Afonso Henriques concedeu aos hebreus o direito de permanecerem nas próprias casas, nos bairros em que viviam. Em Lisboa, além da Judiaria Grande — que ocupava bom pedaço da Baixa, entre a antiga Rua Nova dos Mercadores (algures entre a Praça do Comércio, o início da Rua do Ouro e da Rua dos Fanqueiros), à Igreja de São Nicolau, à Igreja da Madalena até à primitiva Igreja de São Julião (no cruzamento da Rua de São Julião com a Rua Augusta), a zona mais internacional e centro do comércio na capital —, havia outras judiarias: no Campo da Pedreira, mais ou menos onde fica o Largo do Carmo; nos arredores dos Paços do Concelho ficava a Judiaria Nova — tudo arruinado pelo terremoto de 1755 —; por fim, esta que ainda conserva alguma característica do período medieval, a Judiaria de Alfama, pegada à Torre de São Pedro, que existia à Porta de São Pedro, uma das entradas da cidade. Além das judiarias, está documentado!, algumas famílias judias viviam em zonas destinadas aos cristãos.
Com o Édito de Expulsão dos Reis Católicos, fugidos de Castela e Aragão, dezenas de milhares de sefarditas migraram para Portugal. Há quem afirme que foram cerca de 100 mil exilados ao longo de alguns meses; o número exato ninguém sabe. Uma parte foi viver para a capital, uns tantos ao serviço do rei, uns quantos ao serviço de toda a corte, outros para o comércio. A maioria juntou-se às comunidades, já expressivas, existentes nas vilas raianas, na fronteira dos dois reinos: Castelo Rodrigo, Vila Foz do Côa, Almeida, Pinhel, Guarda, Trancoso, Celorico da Beira, Linhares, Belmonte, Covilhã, Vila Maior, Sabugal, Penamacor, Castelo Branco…
Justamente as terras que fui, agora, conhecer. Não todas. Só algumas judiarias e vilas históricas. Há muito o que ver, e o verão escaldante desanima a caminhada ao sol, o corpo quer a sombra das castanheiras e a água fresca das serras — em quanta praia fluvial. Os castelos, burgos protegidos e cidadelas também pedem atenção. A boa comida e a particularidade do vinho reivindicam vagar. Os cinco dias de viagem foram insuficientes para tudo — é motivo de regresso.
De Lisboa a Castelo Branco, por autoestradas, são duas horas de viagem; e vê-se menos. Fugindo das portagens, os pedágios de cá, a paisagem expande por mais uma hora: o montado alentejano, a albufeira de Montargil e, quase lá, Vila Velha de Rodão; que ficou para uma próxima viagem. Foi oportunidade e não coincidência o encontro com o Adriano e família, eles vindo de Madrid e nós a caminho da Beira. Boa a conversa, não sobrou tempo para o almoço, mas caminhamos pelo antigo burgo medieval e sua judiaria; a Praça de Camões, a Praça Velha, centro da vida na antiga cidade de pedra, com seus edifícios emblemáticos: a Casa do Arco do Bispo, o “Domus Municipalis” e o Solar dos Cunha. Curta caminhada até a Torre do Relógio, de lá à Sé Catedral, então o Jardim do Paço Episcopal e, à frente, o Parque da Cidade. Consta que a aldeia foi fundada pelos Cavaleiros do Templo. Há castelo, há muralha, há mosteiro, há convento, há bastantes igrejas. Mas o sol inclemente força a parada para a água e a cerveja. Na cidade quase sem gente, ouço o ensaio no Conservatório: violas e violinos afinados executam uma composição que desconheço. Impressiona a quantidade de museus em cidade tão pequenina: no Museu Cargaleiro, pintura, cerâmica, escultura, azulejaria e tapeçaria do artista português; o Museu de Arte Sacra da Misericórdia; o museu de colchas de Castelo Branco; o Centro de Interpretação Ambiental e o Centro de Cultura Contemporânea, onde vimos a exposição de Helena Almeida, coleção Serralves. Só essa exposição já valeria a paragem.
Consta que a aldeia foi fundada pelos Cavaleiros do Templo. Há castelo, há muralha, há mosteiro, há convento, há bastantes igrejas. Mas o sol inclemente força a parada para a água e a cerveja.
A caminho de Covilhã, sempre fugindo às portagens, é pouco mais de uma hora. A vista, os vales e montes, o verdume e a pedra. Chegamos famintos. O hotel fica distante, a meio caminho do alto da serra. Se subir, cansado assim, não desço. Não hoje. Decidimos jantar antes do check-in. A consulta às anotações de viagem: onde comer? São mais de sete, e o dia ainda vai claro. Será assim até às dez. Agora, mais fresco. Com sorte, penso, talvez haja tempo para conhecer a antiga judiaria. Sigo com o carro por ruas apertadas na velha cidade. Estaciono não sei como, de primeira, numa ladeira estreita. Restaurante escolhido: A Taberna da Laranjinha. As ruas não estão desertas; nem cheias. Há vida nas esplanadas. Na viela tortuosa, essa sim vazia, são as andorinhas que dão vida, gazeiam aos bandos. Chegamos. O restaurante ainda fechado, recorro ao funcionário que passa apressado: tens reserva?; ele pergunta. Não temos; respondo eu. Ele faz caras, entra, vai ver o que se pode arranjar, afinal, somos só duas pessoas. Falta pouco para a grande surpresa da viagem. Mas não hoje. Fica para a próxima crônica.
Continua em agosto…
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