Um encontro – por Osvaldo Alvarenga*

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Eu vi quando ele chegou. Parou diante do americano sentado à minha frente e disse qualquer coisa que, à distância, não ouvi. Pelas reações, percebi que a abordagem foi infrutífera. A esplanada, improvisada sobre a calçada um pouco mais larga naquele ponto da 1º de Maio, em Alcântara, não estava cheia. A duas ou três mesas da minha, o americano e a sua mulher, ou namorada – não pareciam turistas –; para além dele, bem mais adiante, depois da porta do restaurante, de terno e gravata, um homem almoçava sozinho; atrás de mim, à direita, junto ao muro, duas mesas ocupadas por homens metidos em uniformes da Carris e, mais atrás, próxima à rua, uma família ocupava mais duas mesas. Outras tantas estavam vazias, e entre mim e o casal americano não havia ninguém sentado. Agora, ele caminhava na minha direção. Muito magro e demais agasalhado para o dia tépido deste outono ensolarado: chambre azul, de lã, grosso e surrado, antiquíssima cacharrel cinza, calça jeans bastante larga, gorro também de lã, também azul, e velhos tênis pretos. Eu fingia que não o via.

— Senhor, uma moedinha, se faz favor!

— Não tenho trocados — minha resposta habitual para esse tipo de rogativa.

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— Então dê-me uma sande. Tenho fome.

Fiz um sinal… Na verdade, só olhei para o garçom que, encostado ao batente da porta, acompanhava a cena. Um leve movimento com a cabeça foi o suficiente para ele vir:

— Se faz o favor, uma sandes para esse senhor.

— E um sumo também, pode ser? — seguiu o pedinte.

— E um sumo também. Obrigado — disse eu.

O garçom marchou rápido para dentro do restaurante, o indigente foi atrás. Entraram ambos. Sentado do lado de fora, eu não via o interior. Sem saber o que faziam os dois homens, pus-me a pensar: “O cara tem conta corrente na tasca; vai transformar em bagaço a sandes e o sumo.”

Não demorou nada, ele reapareceu à porta. De lá, com gestos e palavras, superando o barulho da rua, agradeceu-me. Respondi com um quase sorriso, fiz que sim com a cabeça, e continuei mastigando. Algum tempo depois, o garçom voltou com um pacote e uma garrafinha de Compal (pela cor amarelo-gema do suco, devia ser sabor manga ou pêssego). Entregou-os ao pedinte. Eu estava errado. Penitenciei-me. Ele estava mesmo com fome. Caminhou para perto e sentou-se, bem à minha frente, numa outra mesa. Depois de abrir o saco de papel pardo e examinar o sanduíche (de queijo e presunto), e antes de dar a primeira mordida, mais uma vez, agradeceu-me. Agora, sem a máscara, pude vê-lo melhor: não era mais velho do que eu, ainda assim, tinha muitas rugas e nenhum dente. Desta vez, de boca vazia, eu puder dizer qualquer coisa como “aproveite”, “bom apetite”, coisa assim.

— As pessoas pensam que eu peço moedas para comprar drogas. Larguei as drogas faz mais de trinta anos.

— Boa.

— Larguei a frio. Disse à minha mãe, fui para uma instituição, fechei-me num quarto, sofri muito, tremi muito, não foi fácil, mas eu venci a droga.

— Parabéns, imagino que tenha sido difícil…

— Queriam dar-me metadona. Metadona! Eu vou lá deixar uma droga para trocar por outra? Parei. Há trinta anos que não uso drogas.

— Como você se chama?

— Jorge. E o senhor?

— Osvaldo.

— Osualdo… O senhor é brasileiro? — Estava óbvio que sim. Não reagi. Ele seguiu: — Eu tenho amigos brasileiros, um do Paraguai, um de Belo Horizonte e um de… — fechou os olhos. Tentava se lembrar — de Minas Gerais. É! De Minas Gerais… e só!

Três ou quatro mordidas e o sanduíche estava consumido, o suco também.

— Senhor Jorge, se eu soubesse que você ia sentar-se para comer, eu teria pedido um prato igual ao meu.

— Podes pedir. Tenho fome!

Mais um aceno e o garçom chegou rápido.

— Por favor, um prato igual ao meu para o senhor…

— E uma mini. Ó senhor Osualdo, pode ser?

— E uma mini.

— Mini não há — disse o garçom olhando para o Jorge — Pode ser imperial ou Super Bock 33.

— Pode ser Super Bock — disse ele. O garçom olhou para mim.

— Pode ser.

— Demora? — Ele perguntou, mas o garçom saiu sem dar resposta.

— Demora — respondi. Ele fez expressão de impaciência. Tirou um cigarro do bolso e acendeu-o.

Quando o garçom voltou trouxe a toalha de papel, o prato e os talheres e pôs-se a arrumar a mesa. Agora, mais à vontade, ele cobrou a cerveja. O garçom foi e voltou com a garrafa. Ele reclamou o copo. Justíssimo. Mas, da forma como exigiu, por sua entonação, num lapso, tive a impressão de que, sentado ali enquanto o garçom o servia, meu convidado pareceu-me prepotente.

Senti, na hora, o mesmo desconforto que sentira tantas vezes quando, em companhia de amigos ou amigos de amigos – gente de todo tipo, gente bem sucedida, mal empregada, autosuficiente, desamparada, de todos os gêneros, de diferente faixa etária –, presenciei demonstrações de arrogância no trato com empregados, garçons, frentistas, faxineiros, caixas de supermercado. Difícil perceber o que vai dentro das pessoas. Difícil perceber o que vai dentro de mim: por um segundo arrependi-me da gentileza. Eu estava ali e meu convidado tratava com soberba o garçom que arrumara a mesa para o seu almoço; o mesmo garçom que, há minutos, ele seguira com enorme subserviência.

“Se quer descobrir a verdadeira natureza de um homem, dê-lhe poder.” Disse Robert G. Ingersoll ao classificar como misericordiosa a natureza do senhor Abraham Lincoln. Não sei… naquela esplanada, convertido em cliente, pareceu-me que o meu favorecido deixou aflorar o seu pior.

Continuamos nossa conversa. Entre meados das décadas de 1980 e 90, em Portugal, houve uma epidemia de consumo de heroína. O senhor Jorge não me explicou isso, contou-me apenas que foi drogado, que perdeu amigos por overdose e levados pela AIDS. Disse-me que ele mesmo é soropositivo e que toma doze remédios todas as noites. Contou-me que vive com a mãe: ele com um subsídio de 200 euros por mês, ela, viúva de um ex-combatente na África, com uma pensão de 400. Os proventos de mãe e filho mal chegam para as despesas do aluguel social, de energia, gás e água da casa em que vivem, na Madragoa. Explicou-me que, para comer e para todas as demais despesas, a sobrinha ajuda, e ele mendiga.

O garçom trouxe a comida numa travessa exatamente igual à minha – carne de porco à alentejana: nacadas de carne e contadas amêijoas marinadas com vinho branco, alho, páprica e coentros, servidas com pikles, batatas fritas aos cubos e uma rodela de limão. Como as garfadas eram apressadas e a boca sempre cheia, a conversa cessou. Neste meio tempo, chegou a mãe. Pequena e magra. Como ele, muito agasalhada. Pareciam irmãos. Chegou em silêncio, com jeito assustado.

Talvez surpresa e confusa por vê-lo na esplanada a comer e a tomar cerveja. Pôs-se de pé ao lado dele – eu via bem o seu perfil. Conversaram baixo. Apesar de não ouvir o que diziam, observei quando ela virou-se para mim e me encarou com curiosidade. Não demorou, ele levantou-se. Sobre a mesa, a cerveja consumida e meia travessa cheia.

— Ó senhor Osualdo, eu tenho de ir embora. Sobrou um pouquinho, o senhor não se importa, pois não? Me desculpa… Essa aqui é minha mãe.

— Prazer — disse eu.

Ela não respondeu. Devagar, caminhou para trás de mim e sumiu do meu ângulo de visão. Ele fez questão de vir despedir-se. Num longo aperto de mão – surpreendi-me com a firmeza – agradeceu-me, desculpou-se e me desejou felicidades.

O garçom apareceu para limpar a mesa. Mirou a travessa meio cheia e balançou a cabeça em sinal de censura. Pegou-a e aproximou-se. Queria que eu a visse antes de recolhê-la. Olhou para mim com ar de reprovação, talvez esperasse que eu dissesse algo. E eu disse:

— Senhor António, se faz o favor, me traga o café e a conta. Obrigado!

***

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*Osvaldo reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.

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