Vinte e cinco anos atrás, a curitibana Cristiane Cavalli tomou uma decisão que mudaria para sempre o rumo de sua vida: trocou a capital paranaense pelo extremo sul da Argentina.
De lá pra cá, não apenas construiu uma carreira sólida no turismo, como mergulhou de corpo e alma na cultura, nas paisagens e no estilo de vida de Ushuaia.
Confira a seguir a entrevista com Cristiane que foi dividida em assuntos e elaborada pelo editor do DIÁRIO, jornalista Paulo Atzingen*.
Um amor que a levou ao fim do mundo
A mudança para Ushuaia não foi fruto de um plano ou sonho pessoal, mas de uma decisão guiada pelo amor. Cristiane conta que se casou com um argentino em 1994, e, embora ainda tenham vivido três anos em Curitiba, um dia ele expressou o desejo de voltar para sua terra natal.
“Lembro bem daquela noite. Foi muito difícil. Fiquei desnorteada”, conta. Ela tinha 25 anos e estava recém-casada. “Tinha toda a minha vida no Brasil, e de repente, era uma mudança enorme.” Na época, não conhecia Ushuaia, nem mesmo pelas paisagens. “Sabia que era frio, mas não tinha ideia se eu ia aguentar.”
A decisão acabou sendo tomada. “Na verdade, eu tinha que vir. Era isso ou terminava o casamento.” O relacionamento ainda durou alguns anos após a mudança, mas eventualmente chegou ao fim. Ainda assim, Ushuaia se tornou o seu lugar no mundo e a acolheu.

Do setor público ao empreendedorismo
Cristiane iniciou sua carreira no turismo institucional em 2009, ao ingressar na Secretaria de Turismo do município de Ushuaia. Foram mais de 14 anos dedicados à promoção do destino no cenário nacional e internacional. “Foi uma longa trajetória e um trabalho maravilhoso. Eu adorei tudo o que fiz, o que aprendi, as pessoas que conheci”, conta ao DIÁRIO.
Durante esse período, ela colecionou experiências marcantes. “Foi uma fase de crescimento, de aprendizagem, de relações, de trabalhos e de resultados lindos. Também teve conquistas e, claro, os desafios do dia a dia.” Entre os maiores sacrifícios, Cristiane relembra a dor de precisar deixar as filhas pequenas em Ushuaia para cumprir compromissos profissionais em outras cidades ou países. “Naquele período eu tinha duas filhas pequenas, de 9 e 10 anos. Precisava deixá-las com o pai para poder viajar.”
“Hoje eu colho os frutos dessa trajetória. Valeu a pena.” E esses frutos floresceram em um novo projeto, desta vez ao lado da filha Isabela: juntas, fundaram a Posiciona Travel Trade Marketing, uma empresa dedicada à promoção e posicionamento de destinos e produtos turísticos da Argentina para o mundo — e também do Brasil para a Argentina.
Curiosamente, a essência do trabalho permanece a mesma, ela frisa. “Na Secretaria, minha função era justamente promover o destino. Eu promovia Ushuaia no mercado interno e em mercados externos — Europa, América Latina, Estados Unidos. Quando saí, continuei fazendo o mesmo, mas agora com meu próprio direcionamento, com mais liberdade e foco no setor privado e em outros destinos, além de Ushuaia.”


O turista de todos os cantos
Ao falar sobre o perfil do turista que visita Ushuaia, Cristiane Cavalli traça um panorama diverso e curioso. Segundo ela, os brasileiros são presença marcante no extremo sul da Argentina — especialmente aqueles vindos das regiões Sul e Sudeste. “A maioria dos brasileiros que a gente vê por aqui vem de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul… mas também vem bastante gente do Rio. Na verdade, vem do Brasil todo”, afirma.
O perfil do visitante é bastante variado. “Tem famílias, casais, grupos de amigos”. Muitos chegam de avião, mas há quem se aventure por terra, especialmente no verão. “Tem muitos que vêm de carro, em motorhome, ou até em comboios de moto. Uma vez, vi um Fusca com placa de Alagoas estacionado aqui”, lembra, ainda surpresa com o alcance do destino.
Durante o inverno, as opções de acesso se reduzem, mas a cidade segue atraindo esquiadores e amantes da neve. Já no verão, o cenário muda: as estradas se abrem e os aventureiros cruzam o continente para alcançar o “fim do mundo”.


Cultura e vida em casa
A vida social e cultural em Ushuaia, segundo Cristiane Cavalli, tem um ritmo próprio, moldado tanto pelo clima quanto pela geografia isolada da cidade mais austral do mundo. “Sempre tem opções”, garante, mesmo que não existam tantas estruturas tradicionais. “A gente não conta com um teatro, mas tem a Casa da Cultura, onde às vezes acontecem apresentações. O Hotel Arakur também recebe eventos de música clássica, uma vez por ano.”
Ela cita o Whisky Live, um evento internacional que atrai apreciadores da bebida em julho, além da famosa Festa da Noite Mais Longa, celebração típica da cidade. Competições de montanha e provas esportivas ao ar livre também fazem parte do calendário anual. “Tem muitos eventos ao longo do ano”, resume.
No entanto, o cotidiano social de quem vive em Ushuaia é, segundo Cristiane, muito mais intimista e caseiro. “Eu organizo um jantar, meus amigos vêm, e na próxima vez é na casa de outro amigo. A gente vai se revezando: um cozinha, outro compra comida. O importante é se encontrar, conversar, manter esse vínculo.”
“É um estilo de vida mais voltado para dentro, mais acolhedor. E isso é muito característico daqui.”

Emoções à flor da pele
Falar sobre as experiências mais marcantes em Ushuaia não é tarefa simples para Cristiane Cavalli. A cidade, com sua paisagem idílica entre o Canal de Beagle e a Cordilheira dos Andes, oferece um leque de vivências intensas. “Ushuaia é magnífica, né? É difícil escolher só uma experiência”, revela.
Ela cita o Canal de Beagle, cujas águas guardam as rotas de navegadores como o pirata Francis Drake e o naturalista Charles Darwin. “A gente estudou sobre isso nos livros, e de repente você está ali, navegando nas mesmas águas. É muito emocionante”, diz.
Mas se há um momento que definiu um antes e um depois para Cristiane, foi o sobrevoo de helicóptero sobre a cidade e seus arredores. “Foi o que mais me impactou”, revela. “É surreal. Quando o helicóptero decola e você começa a ver tudo lá de cima… o Canal de Beagle, as montanhas cobertas de neve… você está ali, do ladinho delas.”


A mágica da aurora austral
Após quase 25 anos vivendo em Ushuaia — desde outubro de 1997 — Cristiane Cavalli ainda se encanta com as surpresas que a cidade e o destino, em seu sentido amplo, oferece. Entre tantas experiências marcantes, uma em especial foi a aurora austral que presenciou no ano passado, exatamente no dia 10 de maio.
Naquela noite, o céu sobre Ushuaia se tingiu de vermelho, num espetáculo raro e grandioso. “Aquilo foi incrível, incrível!. Parecia que eu estava dentro de um filme de ficção científica”, descreve. “Estar aqui, no sul do mundo, e ver com os próprios olhos a aurora austral… é uma coisa indescritível, agradeço ao universo por isso” conta ao DIÁRIO.
Para Cristiane, foi uma das cenas mais lindas que já testemunhou em toda a vida. “E isso aconteceu aqui, no fim do mundo.” Um momento que uniu a natureza bruta (e também maravilhosa) da Patagônia com uma beleza cósmica inesperada — e que selou ainda mais o vínculo desta brasileira com Ushuaia.
*Paulo Atzingen é jornalista é fundador do DIÁRIO DO TURISMO
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