Um tumulto de máscaras na fila de embarque e vozes abafadas exigindo direitos e apontando deveres. Pessoas da melhor idade se misturavam aos grupos de risco, crianças de colo e clientes Premium. Todos querendo fugir do coronavírus. Antes, o brasileiro genuíno já mostrara suas garras de exclusivismo (leia-se folgado) indo para a lanchonete e deixando sua mala de mão guardando o lugar. Experto, no bom sotaque democrático.
por Paulo Atzingen (de Salvador, Bahia, publicado dia 21/9) – revisado em 12/01/2021)
A Covid 19 talvez mude pouco o comportamento das pessoas, como na guerra, o medo passa depois que os aviões bombardeiros somem do céu. Ainda em pleno morticínio (mesmo decrescente) pessoas comem sandubas, bebem cerveja, falam ao celular cospem sua saliva no ambiente refrigerado do Terminal 2 de passageiros de Guarulhos. A turma do “to nem aí” dos barzinhos egocêntricos da Vila Madalena aparece no check in, embora sejam mais discretos quando expostos ao senso comum. O aeroporto é uma vitrine da autenticidade e tá todo mundo de cara lavada, atrás da máscara.
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A atendente da companhia aérea tenta por ordem no galinheiro e ao chamar os clientes preferenciais acena pra mim, induzida por meus cabelos prateados. Confesso que atendi e me desvencilhei do alterofilista e da sugar baby ao meu lado – cheios de saúde -, penso, de passagem.
Não há checagem de temperatura e os meus 36 graus não valem para nada. Fiquei dez meses com máscara no rosto, confinado, respirando com dificuldade para ser colocado na prateleira dos rebeldes de asas que incomodados pelas restrições saíram para festas, se encontraram em baladas e insultaram os fiscais da saúde. Mas tudo bem. Menos mal. Vou viajar.
Ritual do embarque
O ritual do embarque e todo aquela expectativa de um voo tem uma descompressão rápida (mas não total) quando a maquininha lê o código de barra com os nossos dados corretos, a atendente confere na tela do monitor, olha para o documento, olha para mim e diz: “Boa viagem!” Às vezes até nos tratam pelo nome!. Não medem a minha temperatura e por um momento sinto que voltei ao reino de 2019! É um prazer deslizar – depois de dez meses! – por aquele carpete de borracha do finger até a porta da aeronave. É uma descompressão descer pelo finger para abraçar a viagem… (Esse último trecho poderá ser incluído nas teses de doutorado da disciplina Futurismo no capitulo “Ritos de Passagem” ou publicado em blogs; autorizo a cópia).
Embarcado
No corredor do avião o primeiro engavetamento ocorre porque o passageiro da poltrona 7 D não decide se usa o bagageiro superior ou enfia seus pertences abaixo da poltrona. Não importa onde ele enfie, a comissária adverte:
– “Senhores passageiros, mantenham a distância de um metro no corredor e sentem rapidamente”.
Em vão.
Idosos franzem a testa, jovens riem com os olhos, crianças não entendem o que se passa…
O segundo congestionamento no corredor é porque o passageiro da 15E se recusa a sentar na fileira do meio. A comissária explica que foi oferecido a ele – ao fazer o check in – a troca (leia-se, compra) de assento. Pede que aguarde o embarque de todos os passageiros (leia-se, contente-se com o que você tem)…
Acomodo-me no assento 20 D, no corredor.
Uso o álcool em gel, discretamente, não quero parecer doente antes de estar
Uso o álcool em gel, discretamente, não quero parecer doente antes de estar. Um voo domingueiro, com muitas crianças, gente com roupas leves e coloridas, mas não há sentimento de alegria em voar. Parece um voo de segunda-feira, indo pra Brasília (se bem que os deputados só voam na terça). A comissária inicia os avisos já conhecidos: como se portar em caso de despressurizacão da cabine, como afivelar o cinto, como pular no oceano e essas coisas…
Mas há avisos novos.
Mas há avisos novos: “Evite se movimentar na aeronave, evite usar os toaletes e o serviço de bordo está suspenso”. É estranho ouvir isso, mas é necessário, é urgente!. Momentos de lazer e relaxamento se transformam em horas de confinamento e cuidados. A aeromoça minimiza, quase se desculpando:
“Ainda não podemos sorrir para vocês, mas saibam que vocês são especiais e em breve tudo voltará ao normal…” é um alívio.
Máscara sobre a máscara
Mas o cume dos avisos vem no fim do taxiamento:
“A máscara não poderá ser retirada em nenhum momento do voo, somente se for necessário o uso da máscara de oxigênio”. Que bom que as máscaras não se encontraram.
A viagem de duas horas para Salvador é excelente e a companhia aérea cumpre o seu principal papel de transportadora. O resto são penduricalhos.
O desembarque
Tanto o piloto quando a comissária comunicam que o desembarque será feito fileira por fileira, começando obviamente pelas da frente. Vários passageiros, nascidos aos 7 meses, se levantam como se a comissária falasse grego, como se quisessem sair do útero antes do tempo.
“Senhores passageiros, é proibido ficar no corredor. O desembarque será feito apenas pela porta dianteira. Pedimos a gentileza que se acomodem em seus lugares”. Todos voltaram a seus assentos. Pela primeira vez desde a partida, vi que a humanidade ainda tinha chance de se salvar.
Chegamos.
Paulo Atzingen é jornalista