Paulo Atzingen*
Viajei para a ilha Príncipe Eduardo, na Nova Escócia, no Canadá. Fiquei hospedado por algumas semanas na vilazinha de Avonlea num hotel rústico, mas aconchegante. Sim, fiz essa viagem para conhecer Anne Shirley.
Fui várias vezes à fazenda Green Gables e lá conheci os irmãos Mathew e Marília Cuthbert, que adotaram Anne.
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Quando pude conhecê-la pessoalmente – estava com uma pressa imensa -, passou por mim correndo e subiu as escadas que levavam ao seu quarto. Depois, desceu mais calma e explicou que tinha que libertar uma fada que estava presa dentro de seu vestido azul, no guarda-roupa. Tirei uma self com ela (que bobagem), me apresentei em francês e disse-lhe que era brasileiro. “Oh, Brazil, dos rios que são as veias da Amazônia com suas árvores seculares, seus pirilampos e sua vida infinita?”, disse-me em um português carregado de erres, mas falou de um ímpeto, parecia que jorrava palavras de sua boca, quase sem pensar…subiu a escada correndo novamente e fiquei na copa, com Mathew e Marília, sem saber o que falar…
Foram duas semanas inesquecíveis. Voltei com a roupa encharcada de poesia, borboletas e infância. Essa menina de cabelos ruivos me mostrou uma beleza refletida no lago espelhado que há muito não via. Caminhei com ela para a escola várias vezes e descobri que a cor da sua alma não é branca, não é negra e nem é da cor dos índios norteamericanos. É transparente. Ela ama sua amiga Diana Barry com a intensidade e a sinceridade que se deveria amar verdadeiramente os amigos, uma sinceridade firmada em um pacto.
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Ela com sua infância órfã subliminou tudo e foi afortunada com um coração generoso, amoroso e se tornou uma pessoa que todos admiram, amam e querem por perto, vi isso aqui em Avonlea.
A neve que cobre os campos de Green Gables neste inverno dá uma tonalidade diferente à paisagem daqui. Mas a inquietude, a força interna e a esperança incontida dessa menina de cabelos ruivos derretem o gelo e aquece o coração de todos que se aproximam dela. Muitos, como eu, a princípio, não entendiam seu entusiasmo e sua força original, sua fonte de imaginação. Basta se chegar mais perto para entender. Foi o que eu fiz.
Ah, Anne, somos órfãos de seu reino da floresta encantada, com sua casa de paredes de folhas e telhados de cascas de árvore.
Ah, Anne, somos órfãos de sua sede de justiça ao defender o amigo, o índio, o negro, a mulher e o fraco.
Ah, Anne, somos órfãos de sua linguagem que dá saltos em seus significados e se encaixam dentro da verdade mais pura e jamais imaginada.
Ah, Anne, somos órfãos de sua beleza cor de abóbora, de suas sardas no rosto e dessas tranças que te caem até a cintura.
Ah, Anne, somos órfãos de sua poesia, da sua maneira de ver o mundo e as pessoas como se elas fossem encantadas e levassem no coração o mesmo amor e compaixão que você leva no seu.
Anne, você despertou nas pessoas a indignação por tudo aquilo que não se podia mais se indignar!
Anne, você nos levou ao Reino dos bosques encantados com suas casas invisíveis e seus caminhos acolchoados por folhas de outono.
Anne, você nos levou pra dentro da sua história de órfã, que nunca desistiu de encontrar suas profundas raízes que revelaram seu futuro ensolarado e sua estirpe de cristal.
Anne, volto para o meu país com a lição que aprendi com você em Green Gables: sermos órfão de pátria ou de país não nos arranca a coragem e nem nos torna covardes. Ao contrário, nos impulsiona para tudo aquilo que é mais digno, mais alto, glorioso e invisível aos olhos comuns.
*Paulo Atzingen é jornalista
Anne of Green Gables (no Brasil: Anne Shirley e Anne de Green Gables; em Portugal: Ana dos Cabelos Ruivos) é um romance da escritora canadense L. M. Montgomery, publicado em 1908. Foi escrito como ficção para leitores de todas as idades, mas nas últimas décadas tem sido considerado principalmente um livro infantil. Ambientado no fim do século XIX, o livro conta as aventuras de Anne Shirley, uma orfã de onze anos que, por engano, acaba indo morar com dois irmãos de meia idade, Matthew e Marilla Cuthbert. Os dois vivem em uma fazenda na fictícia cidade de Avonlea na Ilha do Príncipe Eduardo e originalmente pretendiam adotar um garoto para que este os auxiliasse com os trabalhos braçais.
Desde sua publicação, Anne of Green Gables já vendeu mais de cinquenta milhões de cópias e foi traduzido para 20 línguas