Comprei hoje o bacalhau que farei na sexta. Tenho a casa cheia de sobrinhos e sobrinhos netos. Mantenho a tradição. Recobro o passado: entre 1987 e 88, eu morei vários meses na casa dos meus tios; que me acolheram como um filho querido. Meu tio Joaquim, casado com a tia Isaura, irmã de minha mãe, nos anos 30, foi criança de rua, em Lisboa. Portugal era um país muito desigual àquela altura: paupérrimo para muitos, cheio de oportunidades para poucos. Ele, lógico, acompanhava o primeiro grupo. Numa tarde fria de dezembro, véspera de Natal, lembro-me como se fosse ontem, ele me contou que, ao longo de sua infância, bacalhau era comida que os lojistas davam de esmola aos pobres. Portugal tornara-se um grande produtor mundial do pescado, e também um grande importador. Disse-me ele que ainda criança muito pequena, “um puto”, sempre com fome, seguia com os mais velhos, “a malta da rua”, para a porta das mercearias e dos armazéns a pedir comida, e que, com frequência, recebia lascas do peixe cru, seco e salgado, sobras de pão e restos vinho. Cresceu com essa lembrança. Foi a sua madeleine no chá. Quando o conheci, já velho, nostálgico, ele buscava na memória o sabor daqueles tempos, mas uma úlcera gástrica, que evoluiu para um câncer, negava-lhe o prazer de voltar à sua infância pelo sabor.
Os portugueses são, de longe, os maiores consumidores de bacalhau no planeta: conforme noticiou a RTP dia desses, cerca de sete quilos per capita por ano. É mais que o dobro do que comem os espanhóis – os segundos da lista.
Consta que os vikings foram os primeiros a secar o peixe para alimentar a tripulação nas longas travessias de barco. No início dos tempos, provavelmente, não buscavam especificamente os Gadus, peixe da família dos Gadidae, que identificamos como bacalhau. Buscavam qualquer pescado que pudesse alimentar seus soldados e mercadores. Como os Gadus eram abundantes nas águas geladas do Mar do Norte, eram aqueles os peixes mais comuns nas embarcações escandinavas.
Apesar de o bacalhau ter chegado à Península Ibérica nos barcos vikings – isso há mais de mil anos –, foram os portugueses que levaram o bacalhau para o resto do mundo.
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Apesar de o bacalhau ter chegado à Península Ibérica nos barcos vikings – isso há mais de mil anos –, foram os portugueses que levaram o bacalhau para o resto do mundo. A motivação não foi outra senão a mesma dos navegadores escandinavos: servir de alimento aos fidalgos embarcados durante as longas (e quentes) travessias da expansão portuguesa. Assim, o peixe, então salgado e seco, chegou à África, às Índias e ao Brasil (já lá vou). Porém, antes dos Descobrimentos, ao longo do séc. XIV, o bacalhau conquistou a mesa dos católicos por todo o sul da Europa, justo à época em que Portugal começara a despontar como grande consumidor do pescado. Há registros de que, ao final daquele século, as embarcações portuguesas disputavam os Gadus com dinamarqueses, ingleses e, julgo eu, bascos e bretões, entre a Terra Nova (Canadá), a Gronelândia, as Ilhas Britânicas e o continente europeu, no Atlântico Norte.
Faço um resumo muito rasteiro dessa história. Foi mais ou menos assim que o pescado caiu no gosto dos portugueses: a igreja impunha uma série de restrições ao consumo de carne e de outros produtos de origem animal que, nos primórdios do catolicismo, eram associados ao pecado da gula, indutores da euforia, da excitação, e do pecado da luxúria. Criam que a carne aumentava a produção de sangue que se convertia em esperma e estimulava a líbido. Daí a obrigação de abstinência durante os 30 dias que precedem o Natal e os 40 entre o Carnaval e a Páscoa, períodos dedicados à preparação para o nascimento, martírio e ressurreição de Cristo. Também vetada às quartas, sextas e aos sábados, dias de jejum e abstinência, e mais uma dezena de Dias de Guarda ao longo do ano: nada de carne, gordura, manteiga, queijo e ovo. Preceito levado muito a sério no período medieval e que atravessou os séculos. O peixe, ao contrário, por viver na água, era considerado frio, sóbrio e puro: Cristo pregou para pescadores, tantos foram os apóstolos que viviam da pesca; a representação do peixe foi o primeiro símbolo cristão (e ainda é em certas correntes pentecostais). Tantos dias sem carne, o peixe ganhou relevância na dieta dos cristãos e protagonismo nas receitas por toda a costa mediterrânea, e o bacalhau, por ser um alimento nutritivo, fácil de conservar e relativamente barato, ganhou as mesas portuguesas nas noites de Consoada dos Dias de Guarda. Séculos depois, durante o Estado Novo, pela dimensão da produção nacional, tornou-se a proteína barata de que se lembrava o meu tio; tornou-se popular.
É provável que Pedro Álvares Cabral tivesse um bom estoque de bacalhau armazenado na nau que o levou ao Brasil, e que não os trocou por cocares.
É provável que Pedro Álvares Cabral tivesse um bom estoque de bacalhau armazenado na nau que o levou ao Brasil, e que não os trocou por cocares. Não foi dessa vez que os brasileiros conheceram a iguaria. Demoraria muito tempo para que o peixe chegasse às terras do Brasil. Foi com a transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. A partir daí, a moda pegou. Primeiro entre os cariocas, aos poucos por todo o país, mais acentuadamente onde a comunidade portuguesa é maior.
Em casa, sempre, desde menino, no almoço da Sexta-Feira Santa e na ceia do Natal, o tradicional “bacalhau com todos”: cozido com batatas, cebolas e ovos (porque couve, cenoura e grão de bico a mãe não gostava), tudo colocado separado em travessas e arranjado no prato, temperado com alho cru picadinho, pimenta, azeite e vinagre – ai, que bom! Naquele Natal de 1987, meus tios, a Ana Cristina, filha deles e eu, fomos para a casa do Vidita, primo, também filho do casal. Lá, numa noite de que não me esqueço, cheia de afetos, junto com a família, a Teresa e as duas filhas pequenas, a Ana Catarina e a Marta, mesmo sem carne, cometemos o pecado da gula. Comemos como nababos: gambas, percebes, sapateira e também “bacalhau com todos”, mais filhoses, rabanadas e castanhas assadas acompanhadas de vinho do porto. Meu tio comeu um poucochinho.
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