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Quando a Holanda drenou Bordeaux e o Médoc virou vinho

Como a engenharia da água vinda da Holanda criou o solo dos maiores vinhos de Bordeaux — e mudou para sempre a história do Médoc

Por Waleska Schumacher, de Haia – Países Baixos*

Quando exploramos regiões vinícolas pelo mundo, nem sempre nos perguntamos o que aconteceu no passado naquela terra. Olhamos os vinhedos, os castelos, os povoados encantadores… mas esquecemos de olhar sob os nossos pés. Um excelente exemplo disso é o Médoc, ao norte de Bordeaux. Já pensou em explorá-lo com um novo olhar? Pensando em como ele começou — e por que se tornou o que é hoje?

Ao caminhar, pedalar ou dirigir pelo Médoc, admirando suas florestas, vinhedos e châteaux, poucos imaginam que, séculos atrás, ali havia apenas um pântano. Uma terra difícil, insalubre, onde a agricultura era praticamente impossível.

As cheias do estuário do Gironde isolavam vilas inteiras. A água parada alimentava doenças. Mas foi justamente nesse cenário inóspito que surgiu uma transformação extraordinária.

Médoc
Fachada Château Lafite Rothschild. Arquivo pessoal Waleska Schumacher – Divulgação

Os mestres da terra criada: os holandeses

No final do século XVI, a Holanda vivia seu apogeu como potência comercial e referência em engenharia hidráulica. Por séculos, os holandeses haviam domesticado o mar em casa, criando terras férteis chamadas polders. Esse conhecimento, somado ao desejo francês de ampliar áreas produtivas, abriu espaço para uma colaboração decisiva.
Em 1599, o rei Henrique IV autorizou oficialmente a drenagem dos pântanos do Médoc. O engenheiro flamengo Humphrey Bradley, formado em Bergen op Zoom, na Holanda, e o comerciante Conrad Gaussen lideraram os primeiros projetos. Com o apoio de famílias como Van Uffelen, Hoeufft, Kat e van Bommel, iniciou-se a incrível missão de transformar o impossível em produtivo.

A técnica incluía diques, canais, comportas e até vegetação costeira, como a gramínea marram grass (Ammophila arenaria), usada para fixar dunas. Assim nasceram os mattes: terras drenadas, férteis, com solo de cascalho ideal para a viticultura.

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Château Margaux, Ícono do Médoc. Aquivo pessoal Waleska Schumacher – Divulgação

Médoc: a terra que nasceu do engenho

Até então, a produção de vinhos em Bordeaux se concentrava em Graves e na margem direita. O Médoc era visto como território marginal. Mas com a drenagem e o surgimento de solos pedregosos bem drenados, tudo mudou.

Château Margaux foi um dos primeiros a explorar esse novo território. Em poucos anos, surgiram também Lafite, Latour, Beychevelle, Cos d’Estournel e outros. Todos eles prosperaram sobre terras que só existiram graças à ousadia de engenheiros e visionários.

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As dunas do Médoc e a vegetação costeira. Arquivo pessoal Waleska Schumacher – Divulgação

A uva perfeita para um terroir recém-nascido

Na mesma época, entre 1635 e 1670, surgiu naturalmente na região uma nova variedade de uva: a Cabernet Sauvignon. Resultado do cruzamento espontâneo entre a Cabernet Franc (uva tinta) e a Sauvignon Blanc (uva branca), sua origem foi confirmada por DNA em 1997 por pesquisas da Universidade da Califórnia, Davis.
Coincidência ou destino? A Cabernet encontrou no Médoc um lar ideal: solos drenados, boa insolação e influência do estuário que regula o clima. Nascia o estilo dos grandes vinhos da margem esquerda de Bordeaux — longevos, potentes e elegantes.

O reconhecimento global

Com o passar dos séculos, o Médoc passou de pântano ignorado a símbolo de prestígio. Em 1855, por ocasião da Exposição Universal de Paris, Napoleão III solicitou uma classificação oficial dos melhores vinhos da França. A Câmara de Comércio de Bordeaux encarregou os corretores da região de organizar essa lista — e o resultado foi a célebre Classificação de 1855.

Entre os cinco Premier Grands Crus Classés, quatro estão no Médoc: Château Lafite Rothschild, Château Latour, Château Margaux e Château Mouton Rothschild (este último promovido ao primeiro nível em 1973).
Um feito notável — e que só foi possível graças à transformação geográfica iniciada pelos holandeses dois séculos antes.

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Vinhedos Château Margaux Médoc. Arquivo pessoal Waleska Schumacher – Divulgação

Uma ponte entre povos e séculos

A história do Médoc é também a história de intercâmbio cultural. De engenheiros holandeses a comerciantes bordaleses, agricultores, visionários, reis e viticultores… todos contribuíram para tornar possível o que parecia inalcançável.
Quando olhamos para uma taça de vinho, esquecemos que antes dela existia água parada, doenças, isolamento. A transformação do Médoc nos lembra de como o vinho é, antes de tudo, uma história de superação — da natureza e de nós mesmos.

Um brinde com história e futuro

Da próxima vez que você visitar uma região vinícola, tente enxergá-la com esse olhar: o que já foi essa terra? O que permitiu que esse vinho existisse?

No caso do Médoc, o vinho que celebramos hoje é o legado líquido de uma engenharia precisa, de uma visão ousada — e da coragem de transformar um pântano em patrimônio da humanidade.

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Um brinde pela historia do Medoc e seus garndes vinhos. Arquivo pessoal Waleska Schumacher – Divulgação

Fontes consultadas:
● Johnson, Hugh. The Story of Wine. Mitchell Beazley, 2020.
● Meredith, Carole. Estudos genéticos sobre uvas, UC Davis.
● Historiek.net: “Polders voor de Médoc” – historiek.net
● Porte du Médoc, Le Site D’Information du CHM https://www.portedumedoc.com/fr/les-communes/canton/geo-physique/eau/474-l-assechement-des-marais-du-medoc#:~:text=De%20tous%20les%20temps%2C%20les,ces%20lignes
● Revue historique de Bordeaux et du département de la Gironde Année 1957 6-1 pp. 25-68

Office de tourisme Médoc-Vignoble

*Waleska Schumacher – Jornalista, escritora especializada em vinhos e membro da FIJEV (Fédération Internationale des Journalistes et Écrivains des Vins et Spiritueux)

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