Conheci Camila Lucchesi mais de perto em uma viagem ao Peru, em um dos circuitos preferidos do país andino: Cusco, Vale Sagrado e Machu Picchu. A viagem teve vários pontos altos como um casamento sob as bençãos de “Pachamama“, um ritual andino com um xamã de verdade e a subida da montanha Huayna Picchu – aquela beleza que aparece nas fotos de Machu Picchu. Na casa do condor – ave simbolo dos Andes que vive nas alturas – nasceu a admiração e o respeito por essa grande profissional.
por Paulo Atzingen*
O bom humor de Camila só é superado por sua solidariedade e cuidado com os colegas. Nessa mesma viagem, misturei pisco sour com altitude, e ganhei de presente dos deuses incas o soroche (mal de altitude) ficando um dia e meio fora de combate. Camila, lembro-me bem, sempre me perguntava: “Melhorou? Beba bastante água… Mastigue folhas de coca…” O casamento “Pachamama”, o ritual xamânico e a subida à Huayna Picchu estão de alguma forma relacionados à minha amizade com Camila Lucchesi. É esta talvez a maior riqueza das viagens: gravar no coração e na mente a afinidade com pessoas, amigos e colegas de profissão. Camila é uma Mulher que escreve o turismo do Brasil e nesta entrevista ela detalha sua incrível viagem, confira:
O começo, a formação acadêmica, o início de carreira
Nasci na capital paulista e, até os 17 anos, morei na zona norte de SP. Tive uma criação muito amorosa, cercada por uma família gigante e muito unida. Mas sempre tive um desejo de seguir o meu caminho de forma independente. Essa vontade me levou a prestar vestibular para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru.
Era motivada tanto pelo fato de sair de casa quanto pelo status da universidade. Ter um diploma de uma instituição pública pesou e, ainda que eu tenha passado no vestibular para duas faculdades particulares em SP, me mudei para Bauru em 1995. Foi lá que que me formei Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo.
O jornalismo sempre foi uma certeza, desde o ginásio. Minha vontade inicial era ser correspondente internacional de guerras e conflitos (ahahahaha), porque tenho fascínio por História, especialmente relacionada à Segunda Guerra Mundial. Depois, pensei em cobrir esportes. Meu pai sempre gostou de assistir a todas as modalidades e eu via junto, desde criança. Futebol, vôlei, basquete, automobilismo, atletismo, natação, ginástica. A gente via de tudo e isso influenciou na minha busca. Para você ter uma ideia, meu TCC foi sobre Copas do Mundo. (Todas as Copas do Século – De 1930 a 1998).
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Entretanto, o jornalismo de esportes era muito machista quando eu me formei, em 1998. Eu tinha certeza que meu conhecimento técnico e minha paixão pela área me colocavam em vantagem na comparação com muitos colegas, mas nunca consegui uma oportunidade. O turismo veio completamente por acaso. Já formada e de volta a SP, em 1999, começou minha luta por um emprego na capital. Ainda que eu tenha feito estágios em Bauru, eles eram desconsiderados pelos entrevistadores porque “não se comparava ao mercado, às exigências”.
Aceitei uma vaga de assistente administrativo na Cultura Inglesa. Nada a ver com a área, foi o desespero batendo mesmo. Já era maio e eu não tinha nada em vista. Outra decisão acertada, já que lá eu concluí o curso de inglês que havia abandonado na adolescência e, acima de tudo, foi lá que eu aprendi a lidar com público. Falar com gente, tentar entender seus anseios, decifrar vontades que nem elas sabem expressar direito, exercitar a paciência e a empatia… Tudo isso me deu muita bagagem. Gostar de pessoas é, para mim, o atributo MAIS importante para quem trabalha ou quer trabalhar com turismo.
No início dos anos 2000, eu recebi o convite para atuar em assessoria de imprensa, na Scritta, do Paulo Piratininga. Atendia a clientes de educação, entretanto. Mas lá eu ouvi pela primeira vez temas e termos relacionados ao turismo, já que ele atendia a muitos clientes dessa área. Aprendi muito com ele. Reencontrei Paulo algumas vezes, já no Turismo, e sempre comentamos sobre essa coincidência.
Saí da Scritta para fazer o Curso de Focas, o programa de extensão universitária do Estadão. Foi uma virada de chave. Aprendi muito, com grandes nomes do jornalismo brasileiro à época. Éramos orientados pelos mestres Chico Ornellas, Luiz Carlos Ramos e por Paco Sanches, da Universidade de Navarra. Eles criavam dinâmicas muito interessantes de aprendizagem. Tínhamos coletivas simuladas e aprendíamos muita coisa no susto e na inocência da nossa falta de experiência.
Lembro-me da primeira delas, quando o Chico deu um briefing do tema e da entrevistada, sem nomeá-la. Todos perguntavam se seria permitido gravar a entrevista e me recordo da expressão dele, com um sorriso de canto de boca, permitindo a gravação. A entrevista durou pouco mais de 1h e, assim que a entrevistada saiu da sala, ele ordenou: entreguem os textos em 45 minutos. O desespero bateu, já que não daria tempo de decupar o material gravado. Ele respondeu com um: “jornalismo é isso”. Veio dessa época o costume de anotar tudo em um bloco, para ter um backup da gravação.
Depois do Estadão, tive algumas experiências fora do turismo – de tecnologia gráfica a paisagismo, passando por freelas para a revista VIP. Em meados de 2005, uma amiga fotógrafa e uma amiga paisagista me indicaram para uma vaga de repórter em uma revista de turismo. Era a Host – Hospitalidade e Turismo Sustentável. Uma publicação fantástica que acabou em 2013.
O mercado não estava preparado para o tema e a publicação – que tinha um time editorial incrível e tratava de temas muito diferentes, com uma profundidade que eu nunca havia visto – acabou perecendo por falta de recursos. Modéstia à parte, o conteúdo é atual até hoje! Flavio Bitelman, publisher da revista, acreditava tanto no projeto que chegou a bancá-la por algum tempo. Fiquei sete anos na equipe, passando pelas posições de repórter, editora-assistente e editora. Viajei muito, tive experiências incríveis, fiz minha primeira viagem à Europa, entrevistei grandes líderes do turismo nacional e internacional.
Procuro trazer esse viés mais analítico da minha formação para o Brasilturis Jornal, a “minha casa” desde 2016. Acredito que os meios digitais são vitais para a comunicação atual, mas não substituem texto profundo e bem apurado. Que traz conhecimento. O melhor caminho, na minha opinião, é um “combo”, aliando os benefícios dos dois, usando os estilos e ferramentas mais adequadas para cada caso.
Influências
Eliane Brum, sem dúvidas, é a minha maior inspiração no jornalismo brasileiro. Internacionalmente eu sou muito fã da Svetlana Aleksiévitch, escritora bielorrussa que criou um estilo próprio e muito interessante de escrita. Os livros dela são fascinantes! Quem gostou da série sobre a tragédia de Chernobyl PRECISA ler “Vozes de Tchernóbil”, de autoria dela. Um relato fantástico, cruel e extremamente fiel dessa história triste. No jornalismo de turismo eu gosto muito do estilo do Ricardo Freire, que consegue ser despojado, prático e exato nas informações.
Empresas ou jornais que trabalhou
Já citei na primeira (enorme resposta), faltou só a Trend Operadora. Fiquei lá de 2013 a 2015, como gerente de comunicação. Uma vivência e tanto “do outro lado do balcão”, vendo como a indústria se movimenta. Era época do Luppa e eu tinha acesso direto e aprendi muito com o jeitão pragmático dele. Outra pessoa que me trouxe muita visão de mercado foi Gabriella Cavalheiro, hoje na Universal Orlando Resort. Ela é uma líder nata e tem uma visão certeira para os negócios, além de ter muitas referências bacanas que me guiavam na produção de pautas para a Segue Viagem, a publicação da Trend.
O Brasilturis tem um papel muito especial nessa minha trajetória já que tive a oportunidade de começar do zero, sem começar do zero. Quando o jornal foi comprado pela Editora Via, em 2016, ele tinha uma marca forte e muita tradição, conquistadas pelo Horácio Neves, um visionário do turismo brasileiro. Não era um título desconhecido no mercado, portanto. Ana Carolina Melo e Amanda Leonel, sócias da editora, fizeram a transição e um belíssimo trabalho para reposicionar o jornal, cinco anos atrás.
Temos, na editora, outras duas publicações voltadas ao viajante: a revista ViaG, referência em turismo LGBTQIA+, e a Melhor Viagem para viajantes 50+. Também organizamos o Fórum de Turismo LGBT do Brasil, uma ideia do meu colega, Alex Bernardes, que deu muito certo e já está indo para a quinta edição neste ano. O evento capacita o trade para atendimento a esse perfil de cliente, com temas supermodernos e participação de profissionais e empresas que são referência nesse assunto.
Além da realização profissional, minha carreira na editora tem uma importante conquista pessoal. As sócias confiaram em uma jornalista que, à época da contratação, tinha uma filha de pouco mais de um ano (hoje Cecília está com 6 anos). A atitude pode até parecer simples, mas infelizmente ainda é rara. É difícil o mercado dar oportunidades a uma mãe “com criança pequena”. Coincidentemente, fui contratada no dia 8 de março de 2016, o Dia Internacional da Mulher.
Fatos que marcaram a carreira de jornalista de viagens
Tem várias, mas vou citar 4 que são especialmente marcantes. A primeira viagem a Portugal, em 2006, para cobrir o encontro anual do WTTC, em Lisboa. Além de estrear na Europa eu tive oportunidade de entrevistar grandes líderes globais e ganhei uma tonelada de conhecimento sobre turismo. Depois, foi uma viagem que fiz para o norte do Peru, em 2007 ou 2008, também pela Host. Além de conhecer destinos maravilhosos fora de Machu Picchu – que é, sim, maravilhosa, imperdível e fascinante, mas não representa a totalidade da oferta de turismo nesse país maravilhoso. Fazer um trekking na Cordilheira Branca, em Huaraz, dormir em uma barraca e acordar às 5h com o céu estrelado foi uma experiência ímpar e inesquecível. Infelizmente perdi todas as fotos dessa viagem, mas as memórias são vívidas na minha cabeça.
Em novembro de 2016, por uma coincidência, cheguei a Medellín no dia seguinte ao acidente com a equipe da Chapecoense. A viagem estava combinada há pelo menos um mês e eu soube do acidente no transfer, indo para o aeroporto de Guarulhos. Estive no estádio da cidade colombiana, na homenagem às vítimas, e acho que esse foi o momento mais intenso que já vivi. Além de ser uma cidade incrível, verde, que respira cultura e cultiva lindas tradições, a solidariedade expressa no rosto de todos os colombianos assim que eu me identificava como brasileira é algo que vai me acompanhar pelo resto da vida.
Por fim, a viagem à Nova Zelândia também me marcou para sempre. Em 2017, fui para Auckland cobrir o Trenz, um evento B2B superbem organizado e, de lá, parti para o famtour à Ilha do Norte. As paisagens são deslumbrantes, as experiências são de cair o queixo. Mas o povo… Ah, o povo neozelandês me conquistou com suas tradições, com o respeito e o cultivo aos valores Maori. O grupo de viagem era, na verdade, um trio: eu, um jornalista britânico e nosso guia, Peter, maravilhoso. Isso também ajudou a ter uma imersão total nos destinos.
A subida da Wayna Picchu foi muito marcante, bem como uma viagem INCRÍVEL pela antiga Alemanha Oriental, em 2009, para cobrir os 30 anos da queda do Muro de Berlim. Nadar no rio São Francisco e seguir todo o seu percurso por terra, em Alagoas, também foi inesquecível. Os lugares são lindos e o povo, extremamente hospitaleiro. E tem a Serra da Capivara, que é maravilhosa e completamente desconhecida pelos brasileiros. O que é uma lástima…
Todo destino é interessante! É só ter a mente aberta para não apenas ver, mas entender como cada local funciona. Viver o destino, conversar com os locais, extrapolar o “circuito turístico óbvio”. Entender os motivos que levam as pessoas a agir de determinadas maneiras, enxergar as raízes por traz de certas tradições. Viajar pelo mundo é estar aberto constantemente à influência de novas ideias, de novos modos de ver o mundo. E tudo isso agrega demais!
Matéria perfeita
Difícil… Não consigo elencar apenas uma. De destinos, lembro de uma que escrevi há uns dois anos sobre Bath e Derry, ambas no Reino Unido. Tem outra, mais antiga, que foi resultado de uma viagem à Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia, em 2012. Também gosto muito de entrevista e fiquei bem contente com o resultado da mais recente, com a Ana Biselli, da Resorts Brasil.
Eu digo que o texto fica bom sempre que rola uma sinergia com o outro lado. No caso das entrevistas, a objetividade, o conteúdo e a disposição do porta-voz fazem toda a diferença. No caso dos destinos – além de listas de atrativos -, é a participação do guia que transforma um texto “ok” em um texto “uau”. Em Budapeste, na Hungria, tivemos a companhia do Pedro, um português notadamente apaixonado pela cidade e pela profissão que ele abraçou. Foi um dos melhores guias que eu conheci nesses tantos anos de estrada.
Jornalismo e jornalistas de turismo
Isso daria um capítulo inteiro de conversa. Acredito muito no turismo como atividade econômica e no jornalismo de turismo como um importante aliado do trade. Não só para noticiar um determinado fato, mas para reforçar a importância dessa indústria para a geração de renda e emprego. A cobertura evoluiu muito, a meu ver, com o passar dos anos. Mas ainda sinto falta de uma cobertura mais profunda do turismo sob esse viés na grande imprensa. O trade já faz isso muito bem, mas os veículos de massa ainda focam sua cobertura quase que exclusivamente em destinos/atrativos. No máximo, vão à aviação.
Outra prática que me incomoda (bastante) é tratar as viagens como prêmios. Vi muito isso na chamada “grande imprensa”, principalmente em veículos menores, fora das capitais. Quando o jornal não tem um caderno específico de viagem ou os profissionais desse caderno já estão em outros compromissos, o jornalista que viaja para cobrir um determinado destino ou evento era escolhido por sorteio, como compensação por um trabalho bem feito em sua área original ou porque estava em férias. Eram jornalistas bacanas, bem intencionados, sem deméritos. Mas, ao aderir a essa prática, tanto os profissionais quanto as chefias contribuem para reforçar o sentimento de que cobrir turismo não exige um olhar mais crítico, dispensa especializações. Que qualquer um faz. E crava, de vez, essa pecha de que o turismo é algo “supérfluo” sob o ponto de vista econômico e não a potência que, de fato, é.
Um contraponto positivo é uma atenção maior a temas de sustentabilidade. Foi a área que me fez entrar no turismo, então fico muito feliz ao ver empresas e associações do trade criando iniciativas nesse sentido.
*Paulo Atzingen é jornalista
** Entrevista publicada originalmente dia 19 de março de 2021
Paulinho, nossa amizade nasceu ali e foi sacramentada pelos deuses incas. Agradeço pelas gentis palavras. Um beijo!
@CamilaLuchesi: fico muito grato pelo carinho que guarda da gente. Foi na Scritta também que saiu o seu namoro com o Sérgio, nao? Vc chegou como uma foca e saiu da agência mais segura e formada para subir um degrau na profissão . Hoje há uma escadaria atrás de vc. Beijo e sucesso!!!