O João, sommelier do Frade dos Mares, me contou que a vinicultura austríaca está em xeque. Com verões mais secos e quentes as uvas estão mais doces, os vinhos mais fortes e alcoólicos; o que é pouco apreciado por lá. Terão que fazer as colheitas mais cedo, perder produção, ou habituarem-se à nova bebida.
Também em Portugal o aquecimento está comprometendo a produção do vinho? Quis saber. Li que o país já está meio grau mais quente se comparado ao período pré-industrial, e que, se nada for feito, no pior cenário, as temperaturas médias anuais poderão subir até sete graus ao final do século. Sente-se mais no interior do país, me explicou o João. Mas os especialistas em alterações climáticas em Portugal estão menos preocupados com o vinho ou o azeite que com as hortaliças, os grãos e o gado; esses sim, vão sofrer imenso com a escassez de água. Consideram que as vinhas e oliveiras de cá têm carga genética para aguentar as intempéries. Estão acostumadas com as variações do clima. Produziram no Período Quente Romano e no Ótimo Climático Medieval, quando a temperatura era semelhante à atual.
Antes de haver Portugal havia vinhas nessas terras. Estima-se que dois mil anos antes de Cristo (até hoje o maior promotor da bebida), os tartessos produziam vinho no vale do Tejo e do Sado. Mil anos depois, os fenícios expandiram o comércio da bebida. Então vieram os gregos e em seguida os celtas que aperfeiçoaram a produção. Jesus era adolescente quando os romanos tomaram a Península Ibérica. Nessa época, a produção do vinho teve grande desenvolvimento para atender à demanda interna do império. Com os suevos e visigodos, bárbaros cristianizados que tomaram dos romanos esse pedaço da península no Séc VI, o consumo popularizou-se com o ritual da comunhão. Depois os mouros dominaram todas essas terras e, mesmo proibidos pelo Islã de consumir a bebida, foram tolerantes com os cristãos, mantiveram a produção e lucraram com a venda do produto; que nos séculos XII e XIII, período da reconquista cristã, destacava-se como o principal item na pauta de exportações dessa beiradinha ocidental da Europa.
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Gostava de conhecer melhor os vinhos portugueses. Uma pessoa pode passar a vida a estudá-los, melhor ainda, a bebê-los, e mesmo assim não conhecerá tudo. O país é o 11º produtor mundial. A diversidade de climas e de solos garantem infinitas possibilidades aos vinhos portugueses. São mais de 190 mil hectares de vinhas, divididas em 14 áreas reservadas aos vinhos regionais e 31 regiões de denominação de origem controlada, que produzem perto de 6,5 milhões de hectolitros por safra. É coisa à beça. Equivale a 2% de toda a produção no planeta. O número de vinícolas é impreciso, são milhares de micro-produtores e milhares de vinhos diferentes. E como lembrar os nomes das quase 250 castas nativas e outras cerca de 100 trazidas de fora e guardar suas características nos incontáveis terroirs em combinações sem fim? Duvido que eu tenha experimentado um décimo dessa variedade toda. Conhecer mesmo, conheço só uns poucos vinhos.
Vou fazendo provas no dia a dia. A Iêda é quem faz as compras aqui pra casa, e deu de escolher os vinhos nos restaurantes também. Eu tenho bebido. Bebo mais que ela e vou dando notas, enumerando aqueles que gosto mais; e ela compra. Assim vamos experimentando e conhecendo.
Evidentemente que, com tantas possibilidades, há vinhos excelentes e vinhos mauzinhos. Baratos e bons e alguns caros para o que oferecem. Como é natural, há um pouco de tudo. Estou sendo óbvio. Peço desculpas. Para não jogar fora todo o parágrafo sem dizer nada, deixo duas informações que talvez sejam do seu interesse: está muito desenvolvido o enoturismo no país e na última década os vinhos portugueses foram os mais premiados no mundo (não sou eu a dizer, tirei a informação do Guia de Vinícolas Portugal do Flávio Faria, livro editado no Brasil pela Tapioca).
As vindimas começam no final de agosto e estendem-se até o início de outubro. Na minha opinião a melhor época para um roteiro enogastronômico. A região do Douro e o Alentejo estão mais bem preparadas para receber os turistas. Algumas quintas contam com restaurante, outras com hotel e noutras tantas o visitante pode participar da colheita; primeiro as brancas, depois as tintas.
Começo o roteiro pelo Alto Douro onde fomos ano passado com amigos americanos. É a região onde produzem o vinho do Porto. Mas não só. Maravilhas são criadas naquelas encostas classificadas pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Entre as cidades de Peso da Régua e Pinhão, seja num cruzeiro, de rabelo, trem, carro ou bicicleta, são menos de 30 km, a paisagem é deslumbrante. É aquela das fotos em todo material promocional de Portugal. Goste ou não de vinho, qualquer pessoa fica encantada com o passeio. Porém, a maioria das vinícolas fica fora das cidades, quem estiver sem carro terá dificuldade de acesso. Há aquelas cuja visita tem que ser agendada com muita antecedência, como a Quinta do Crasto, recomendada por uma amiga que conhece bem a zona. Como não somos dados a planejamentos, ainda não conseguimos ir. Mas são tantas as quintas que é difícil errar. Para parecer que passo a informação completa, citarei algumas onde fui e gostei: a Quinta do Bomfim, explicam bem todo o processo, produzem bons vinhos e fica praticamente no centro de Pinhão, dá para ir à pé desde a estação; a Quinta do Seixo, dos portos Sandeman, é bonita e estilosa, tem grande variedade de vinhos e são todos bons; por fim a Quinta de Nápoles, da família Niepoort. De todas que conhecemos, a com menos tradição. Talvez por isso improvisaram para a nossa recepção; o que foi ótimo. Fomos muito bem recebidos e andamos toda a instalação guiados por um americano que se apaixonou pelo Douro. As provas foram direto das barricas.
No Alentejo conheço poucas. Estávamos em Évora na semana passada e como a Cartuxa fica ali pertinho, tentei arriscar a visita. O Cartuxa é um belo vinho, mas provavelmente não é por ele que só há horário para visitas em outubro. A mesma vinícola produz o Pêra Manca, o mais exclusivo tinto português. Também no ano passado, fomos à Quetzal, na Vila de Frades. Uma bela paisagem, um bom restaurante, uma galeria de arte interessante, tudo feito com muito esmero e atendimento impecável. Os melhores vinhos não são maus. Ainda vão evoluir. É que a vinícola é relativamente nova. Um casal de holandeses, estão entre os maiores colecionadores de arte da Europa, encantaram-se com a região e compraram a quinta; que está em transformação. É um projeto de vida, de longo prazo. Por isso acredito que ainda vamos beber bons quetzales no futuro.
Mesmo aqui, no entorno de Lisboa, há imensas opções. No Azeitão, por exemplo, fica a Quinta da Bacalhoa, que pertence ao Joe Berardo, para dizer o mínimo, figura bastante controversa em Portugal. Nossa visita foi há mais de um ano. Achei desinteressante. Pouco falam do vinho – que gosto – e muito das coleções de arte do proprietário. Mas a poucos metros de distância fica a José Maria da Fonseca, onde produzem o Periquita; pois é, desse gosto pouco. Mas são deles o Hexagon tinto, não conheço o branco, e o José de Sousa Mayor. Ótimos vinhos. E mesmo o José de Sousa (o que não é Mayor) é bom e barato, ideal para o dia a dia. Os dois últimos são alentejanos. Também produzem ali alguns moscatéis de Setúbal: doces para a sobremesa. As duas vinícolas têm horários de visitas com tour guiado que convém agendar com antecedência. A boa notícia é que você não precisa de carro para ir ao Azeitão. Há ônibus de Lisboa e de Setúbal que passa na porta das quintas. A vantagem é que ninguém perde o passeio por ter que dirigir.
Há em Colares, aqui pertinho, dependendo do caminho escolhido, depois de Cascais ou de Sintra, colado ao Cabo da Roca, O Casal Sta. Maria. É uma belíssima quinta que produz vinhos varietais – todos ou quase todos –, com destaque para os brancos. As vinhas, plantadas na falésia, a 200 m do nível do mar, recebem a água salgada que chega com a brisa constante na região. São bons vinhos, especialmente o Sauvignon Blanc que além do aroma a pimentão (pimentos por cá), deixa na boca o sabor do fruto. É ligeiramente salgado e fresco, perfeito para os dias de verão. De lá, no sentido de Mafra, em Cheileiros, fica a Manzwine, uma modesta vinícola de um brasileiro com um projeto digno de nota: recuperação da Jampal, uma casta em risco de extinção. Estivemos lá em 2016. Por ser relativamente pequena e nova, a vinícola ainda não estava totalmente estruturada para visitas, mas eles foram bastante atenciosos e nos receberam muito bem. Achei bom o Dona Fátima, o varietal da Jampal, mas caro pelo que oferece. E gostei muito do Pomar do Espírito Santo Reserva, que não é barato. Entretanto, considerando o projeto que tem por trás, que não é somente a casta recuperada, há toda uma tradição regional renascendo e junto a geração de renda para os pequenos agricultores locais, a Manzwine merece o nosso incentivo.
Observe, toda as vinícolas têm boas histórias para contar e cada vinho nasce de uma paixão. Viajar pelas regiões produtoras – em qualquer país – é mais que degustar vinhos e desfrutar da paisagem. É sobretudo conhecer gentes e perceber um pouco de como vivem. Coisas para apaixonados. Os que fazem e os que bebem.
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Sobre o articulista:
Osvaldo Alvarenga, tem 54 anos, reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.