Juízo em falta – por Osvaldo Alvarenga*

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Depois de tantos dias confinados, agora que, aos poucos, tudo vai-se abrindo, e que vamos aspirando alguma normalidade, às vezes, é difícil manter a cabeça no lugar. Hoje foi um dia assim. 

O Cagiano veio em casa nos trazer o novo livro da Eltânia, Terra Dividida — autografado —, e, como fosse uma e meia, decidimos ir almoçar todos juntos. A tasca, escolhida por ele, no Largo do Chafariz das Janelas Verdes, mesmo aqui ao lado, é bastante concorrida. Sentados na mureta da praça, tivemos de esperar um bom tempo a vez de entrar. 

Lá dentro, três mesas, dezoito lugares, mais alguns no balcão, trabalham, há 40 anos, no mesmo sítio, marido e mulher, seu António e dona Beatriz; ela no salão, e ele na exígua cozinha. A comida, preparada na hora, demora. Antes, demora dona Beatriz a arranjar as mesas e, fregueses sentados, ir saber o que vai ser para o almoço. 

Finalmente, convidados a entrar, a conversa colocada em dia lá fora, foi deixada de lado; investimos o nosso tempo à espera de dona Beatriz e a observar a freguesia. Muita gente já se tinha ido. Sobrou-nos a mesa do meio. Aquela à porta, quatro pessoas, e, nesta, atrás de mim, um casal. Isso foi quando chegamos, porque, até a hora d’eu ir-me embora, muita coisa mudou: para já, foram muitas vezes substituídos os fregueses ao balcão, uns e outros que param para o café, a cerveja ou a bagaceira e logo se vão. 

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Claro estava, são todos assíduos do lugar. Todos se conhecem e, se alguém chega com companhia de fora trata logo de fazer as honras da casa. Foi assim com o Robert, amigo de um espanhol, apresentado aos comensais como polaco e escritor. Nós à parte, e nossa mesa ao meio atrapalhava — só um pouco — o convívio; resolvido por eles sem timidez num ir e vir, um tal de passar para lá e para cá entre as mesas, interações sem fim, sem máscaras, umas ao queixo ou deixadas nas costas das cadeiras, ou no bolso, ou sei lá onde, porque não estavam nas caras. 

Eu já incomodado com o trança-trança sem máscara, a conversa alta, as línguas misturadas — acredita que atrás de mim estava uma polonesa? Que logo deixou a mesa livre. Ela e o namorado, ou marido, não sei, juntaram-se ao espanhol e ao Robert, todos de pé, numa longa despedida. Dona Beatriz, a única de máscara em meio à azáfama, pequenina entre os eslavos, não parece preocupada, mas deveria, não é nenhuma mocinha, já não a chamam de rapariga faz tempo, simpática, sorri para toda a gente. Vejo nos seus olhos, são eles que sorriem. A boca, já expliquei, vai tapada.

Dona Beatriz, a única de máscara em meio à azáfama, pequenina entre os eslavos, não parece preocupada, mas deveria, não é nenhuma mocinha, já não a chamam de rapariga faz tempo, simpática, sorri para toda a gente. Vejo nos seus olhos, são eles que sorriem. A boca, já expliquei, vai tapada.

Enquanto saem uns, outros chegam, e agora são três a ocupar a mesa atrás de mim. A esta altura, já sem fila à porta, quem comeu não quer sair, fica para o convívio, para o pudim de leite, o Beirão ou o café. De todo sem pressa, dona Beatriz vai trazendo o que lhe pedem. Serviu a nossa comida, o vinho havia trazido antes. Eu, que geralmente não faço frituras em casa, tanto tempo sem, já sentia falta, decidido, pedi, e foi o que ela me trouxe, alheira, dita de Mirandela, com ovo mole e batatas, todos fritos. Iedinha e Cagiano preferiram os lombinhos ao piripiri. 

Terminada a refeição, curioso com o polonês escritor da mesa ao lado, Cagiano quis saber se ele conhecia o Leminski; e deu-se a integração. Iedinha, sabida que é e, afinal, a única entre nós com compromisso de trabalho, incomodada com a desatenção ao vírus na bagunça do lugar, pagou, despediu-se e foi-se embora. Cagiano ficou mais um pouco. Nesta hora, a nossa e a mesa da porta são uma só. O espanhol, soube então, Xavier, de Olivença, cidade raiana, na Estremadura, que, em decorrência das guerras napoleônicas, foi anexada pela Espanha, até hoje em litígio com Portugal, portanto, ele português também, pulou para cá. Expansivo, queria nos conhecer. Cagiano tinha de buscar Eltânia, não sei onde, foi-se embora. Fiquei só com os meus novos amigos. Quando o Robert foi servido, já sentava-se conosco à mesa do meio. 

Uísque, conversa e descuidos. Um assunto que puxa outro, e Xavier puxou os três da mesa dos fundos. Trazidos à conversa, o cigano do Alentejo, foi ele quem o disse, acho, para me impressionar — não por isso —, filho de sírio e cigana; o outro, angolano, não falou muito; e o terceiro, João, brasileiro, co-fundador da Wozen, renascida Eritage, galeria que fica em frente ao Museu Nacional de Arte Antiga, já falei da galeria antes, o conhecia de uma entrevista na televisão, formávamos um grande grupo. Agora, já ninguém comia, dona Beatriz servia mais bebidas, um jarro de vinho para uns, uísques e cafés para outros. 

Quando Xavier mais o cigano puseram-se a cantar, o Robert já havia ido, dona Beatriz fazia qualquer coisa atrás do balcão e seu António, fora da cozinha, esperava à porta, em conversa com dois camaradas que bebiam cerveja, na garrafa, do lado de fora. Quase cinco da tarde. Imaginei que o casal quisesse encerrar o expediente. Eu me levantei e, enquanto dava um tchau geral, o Xavier levantou-se para um abraço. Não fosse a Covid teria recebido. Tempos insanos estes. Disfarcei, desviei e fui saindo. Também o cigano, o angolano e o brasileiro ficaram de pé. Acho que a festa acabou por ali. Segui meu caminho sem olhar para trás. Às cinco, estava aqui sentado contando essa história. 

Em dias assim, penso que é fácil ficar em casa a condenar quem sai. Difícil mesmo é resistir a um encontro espontâneo como esse. Eu mantive todo tempo a distância. Na hora do flamenco, fossem bons os cantores, não sei o que seria de mim.

***

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