Lisboa, tu és só para nós – por Osvaldo Alvarenga*

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“Lisboa, não sejas francesa

Com toda a certeza não vais ser feliz

Lisboa, que ideia daninha

Vaidosa, alfacinha, casar com Paris

Lisboa, tens cá namorados

Que dizem, coitados, com as almas na voz

Lisboa, não sejas francesa

Tu és portuguesa, tu és só pra nós”

                                             José Galhardo

Lisboa, acho, toda a gente o sabe, porque está neste exato ponto do globo, é soalheira, e essa luz, refletida e intensificada pelas águas do Tejo, deita cidade afora, nas calçadas de pedras calcárias, maioritariamente brancas, e porque são claras as fachadas dos prédios, e tantas de azulejo, resplandece. Do rio, fundamento e alma da cidade, por onde chegaram os fenícios para estabelecer feitoria; do castelo, na colina mais alta, primeira urbe de celtas, helenos e cartagineses, depois, fortaleza romana, sueva e visigoda, alcáçova moura, e, por último, Paço da Alcáçova cristão, devotado a São Jorge; dos bairros populares, Alfama, Mouraria, Madragoa e Santo Amaro, dos célebres Belém, Cais do Sodré, Bairro Alto e Graça e dos opulentos Lapa, Chiado e Príncipe Real; do contraste entre as ruas largas e bem traçadas da Baixa Pombalina e do conjunto tortuoso e íngreme de becos, vielas e ruas estreitas em toda parte; e dos imponentes palácios, palacetes e solares aos humildes gaioleiros, aos pátios e vilas operárias; dos miradouros; dos chafarizes; dos monumentos; dos museus; das lojas tradicionais e das lojas com história; da confluência de culinárias portuguesas, às vezes em restaurantes ostentosos, e noutros ditos típicos, muito mais nas tascas e pastelarias, sempre boa a comida e incerta a simpatia — é parte do encanto —; do tempo que passa sem pressa nas esplanadas, nos quiosques das praças, nos copiosos jardins; dos variados cheiros; das feiras; da estética decadente de tantos bares, clubes e pubs; das ginjas ao balcão; do fado; do fado para inglês ver; do teatro de revista; da “noite” e, em todo o tempo, dos alfacinhas, por tudo isso, a velha Lisboa é, ainda é, uma cidade autêntica, sem igual no mundo.

Assim, atrai turistas que exigem serviços, que geram emprego e renda, que suscitam investimentos, que atraem mais gentes, mais turistas e migrantes que pra cá vêm viver, que trazem na bagagem outros ingredientes, hábitos, ritmos, conhecimentos, afetividades, culturas, e, tudo, num círculo virtuoso, torna Lisboa mais cosmopolita; numa mistura própria, singular, e mais interessante, e mais viva, e mais autêntica. E mais gentes chegam, num vasto círculo que… será mesmo infinitamente virtuoso?

Ando por aí e, às vezes, observo a transformação da cidade. Percebo como, lentamente, está a perder algumas das suas particularidades. A calçada portuguesa, porque escorrega — e escorrega mesmo — vai sendo substituída por soluções diversas, umas mais próximas das lustrosas originais, outras bem diferentes. No Miradouro do Largo das Necessidades, o Tejo foi coberto por um paredão de concreto e vidro, um novo Hospital da Cuf. O prédio de arquitetura contemporânea, nada especial, tapou o rio e tirou a vista, essa sim especial, do miradouro. O Café Tati, no Cais do Sodré, era um desses bares com a cara de Lisboa, com aspecto decadente, um local para ir a qualquer hora, para o almoço, o café, o happy hour, o jantar, para depois do jantar; onde, numas certas noites ou num final da tarde de domingo, noite também se no inverno, eu costumava ir para as jam sessions ouvir boa música. Fechou; o aluguel ficou pesado. Soube esses dias, reabriu, em plena pandemia, em Penha de França, um tanto longe de mim. No antigo espaço, remodelado, funciona um restaurante mexicano com estética bem cuidada, nenhuma racha nem descascados nas paredes, agora, uns tantos espelhos, fórmica e atendimento impessoal. Há “mexicanos” assim em qualquer grande cidade do mundo. O Café Tati é um só exemplo entre muitos bares e restaurantes que, mesmo antes da pandemia, desapareceram ou tiveram de se reinventar noutro sítio. Aos poucos, a cidade cede a própria alma. Fecham-se umas quantas pastelarias tradicionais, e tantas livrarias, mercearias, drogarias, lojas de tecidos, sapatarias, tabacarias, barbearias, armarinhos, gravadores, a lista é enorme. No lugar, “lojas chinesas”, metonímia para lojas que vendem de tudo um pouco, abarrotadas de quinquilharias; incontáveis lojinhas de souvenirs, da Sé à Baixa, da Baixa ao Cais do Sodré, porcarias produzidas em série, pouco atraentes, iguais e sem graça, que a malta compra; franquias de cafés ou de restaurantes, iguais a tantos cafés e restaurantes de qualquer grande cidade, de “alimentação saudável”, uns tantos sushis, e muitos kebabs, também pizzas, e hambúrgueres, enfim…

Onde antes viviam os remediados que não podiam pagar o preço de viver na Av. da Liberdade, nas Avenidas Novas, em Alvalade, na Expo, no Campo de Ourique, muito menos no Restelo nem no Estoril; tampouco podiam usufruir do prestígio de residir nos condomínios mais ou menos uniformes, mais ou menos iguais a qualquer condomínio suburbano de classe média alta, construídos às pencas nas periferias de Lisboa, sobrou para as gentes simples, os depauperados, os estudantes e os artistas a velha cidade.

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Há muito decadente, hoje, a zona histórica de Lisboa é cobiçada. Reabilitada aos poucos a partir dos primeiros anos deste século, e bem mais rapidamente de 2013 para cá, desde então, não faltam obras; construções de raiz e remodelações. Na maioria das vezes, são prédios bem recuperados, mas não faltam aqueles de gosto duvidoso a agredir a harmonia arquitetônica local. Encarecidas as zonas históricas, atirados fora os antigos moradores, fartam hotéis, hostels, alojamentos locais, prédios inteiros disponíveis para aluguel de curta duração, negócios viabilizados pelo boom turístico. Os antigos moradores, alfacinhas de gema, muitos deles, agora migram para a periferia. Não para os condomínios mais ou menos prestigiados, mais ou menos cobiçados. Vão para onde calhar de irem, para onde o salário for capaz de pagar as rendas.

Seria hipocrisia minha advogar contra o turismo, mais ainda contra o investimento, de quem quer que seja, português ou estrangeiro. Não é disso que se trata. A pergunta que eu faço é: até quando o balão vai encher antes de estourar? É possível criar condicionantes que, sem estorvar o investimento nem prejudicar o emprego e as receitas geradas pelo turismo, sejam capazes de assegurar mais cidadania aos cidadãos, preservar melhor o que é único e próprio de Lisboa e estender por mais tempo o encanto que é só dessa cidade. Exemplos há muitos. Mas a autarquia oscila, vacila, dá sinais contraditórios e perde tempo.

Percebe que sem o reflexo das águas do Tejo, sem o brilho das calçadas portuguesas, sem os fantasmas da história no casario antigo, nas lojas tradicionais e nas pastelarias, sem a estética decadente dos bares, dos restaurantes, das tascas e dos velhos bairros, sem a animação espontânea das feiras, das festas populares e de todas as noites, sem o autêntico fado, sem a simpatia e, quantas vezes, o mau humor do lisboeta, a cidade perde o que faz dela excepcional?

Lembro-me da primeira vez que viajei para fora do Brasil — foi justamente para cá. Faz muitos anos. Lembro-me, eu tão garoto, do meu fascínio com os jeitos das pessoas, com a arquitetura, com os carros (importados), com a textura do café, com o sabor das primeiras bifanas, com as notícias do Jornal da Noite, dia claro ainda — tanto, tanto a dizer de África, total mistério para mim —, com a praia cheia e o sol que insistia em brilhar até às dez… Lembro-me que, depois, quando viajava por aí, a primeira coisa que eu fazia ao chegar onde quer que fosse dormir, se houvesse uma, era ligar a televisão e encantar-me com programação tão diferente. Gostava, sempre gostei, gosto ainda de experimentar comida de rua; dizem muito sobre a vida do lugar. Viajar era, e continua a ser, antes de tudo, conhecer culturas, desfazer preconceitos e, com o espelho estrangeiro, encarar quem eu sou, e reavaliar o meu país. O sentido da viagem, para mim, e suponho que para muita gente mais, é oferecer-se ao incomum, submeter-se ao diverso, experimentar o estranho; é alargar-se, é aceitar o outro. Afora isso, é contemplação, aventura e gozo.

Quanto disparate estou para aqui a dizer! Alguma vez Lisboa deixou-se ficar? A Menina namora, desde os fenícios, e muda, e transforma-se, e faz-se nova outra vez. Agora, que também é minha, reajo como os namorados, coitados, da letra de José Galhardo. Não me dês ouvidos, Vaidosa. Vá, casa-te com quem queres. Casa-te e sê feliz.



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