Memórias de Uma Ilha, de Caio Camargo: trabalho de escafandrista

Continua depois da publicidade

O livro Memórias de uma Ilha de Caio Camargo é um reconhecimento do autor à Ilhabela que acolheu seus ancestrais antes mesmo da onda turística chegar, no tempo em que chamávamos as vilas e comunidades onde se reuniam pessoas, famílias e amigos de lugar.

por Paulo Atzingen (à Maria José Fazzini Cardial e Cecília Fazzini, com amizade)*

Publicado dia 29 de Maio (RETRO 2023)


Caio fez um trabalho de escafandrista descendo ao coração do oceano azul que banha a antiga Villa Bella da Princeza e de lá retirando tesouros de velhas embarcações repletas de memórias afetivas, detalhes minimalistas de um amor fraternal e maternal encontrado somente nas profundezas.

O livro é repleto de lembranças e saudades narradas por antigos moradores da ilha , entre eles Maria José Fazzini Cardial, avó de Caio.

Veja também as mais lidas do DT

Camargo teve o minucioso cuidado de reunir depoimentos de moradores da ilha dividindo sua obra em capítulos com o nome dos entrevistados: Kenzou Imakawa, Maria José Fazzini Cardial, Maria da Silva Pinto Albuquerque, Hélio Reale e um outro capítulo chamado Memoráveis com  duas dezenas de depoimentos menores que os quatro iniciais.

O que interessava em cada pessoa eram suas lembranças e, principalmente, como as mesmas foram contadas. A dramaticidade, a tristeza, a alegria, o carinho, que compunham a narrativa era o elemento que determinava  a sua importância e, logo, o que deveria ser priorizado e transcrito para o livro“, escreve Caio na introdução de sua obra.

Casas emolduradas pela gente caiçara original, memórias mais que afetivas, memórias mais que históricas (Reprodução autorizada pelo autor)
Ângelo Fazzini em frente ao barco reformado por ele. Ano, julho de 1948 (Reprodução autorizada pelo autor)

Caixa de madeira

Camargo explica nesta mesma abertura a motivação para criar esse documento histórico. “Vinha frequentemente visitar meus avós maternos em Ilhabela. Há um ano resolvi voltar as atenções à minha avó para reconhecer melhor sua história de vida. (…) ela me apresentou uma caixa de madeira, fechada com uma chave, feita pelo seu irmão quando ele estudava marcenaria.  Ao abri-la percebi o carinho e o zelo que ela tinha por aquelas imagens. A cada foto manuseada, emergia um acontecimento,  uma história, um personagem,  uma lembrança “, escreve.

Narrativas foram as âncoras

A partir daí, Caio sai à procura de pessoas com idade de 80 anos ou mais para ouvir seus relatos. Uniu a essas narrativas fotografias que serviram como uma âncora à sequência de depoimentos de fatos levados pelo tempo.  Fotos de barcos sendo artesanalmente construídos, casas emolduradas pela gente caiçara original, pessoas em trajes de festa em uma alegria longínqua, irmãs em seus vestidinhos de domingo sentadas especialmente para uma foto quase apagada pelos anos.

Memórias de uma Ilha
irmãs em seus vestidinhos de domingo sentadas especialmente para uma foto quase apagada pelos anos ((Reprodução autorizada pelo autor))

Memórias mais que afetivas, memórias mais que históricas, memórias atemporais que derrubam com sua força telúrica qualquer projeto de urbanismo que violenta a identidade original de uma comunidade. Violenta a identidade mas não se torna réu, nem vai para a cadeia porque o processo de violência da identidade foi e está sendo assimilado de forma sutil por meio da força imposta pelo modelo atual de desenvolvimento.

A obra tem como um de seus objetivos resgatar as histórias esquecidas e documentar para a posteridade a vida social de uma lugar que se transforma a cada dia, seja pela ocupação de espaços sem planejamento, seja pela desordem de leis ambientais não cumpridas,  seja pela ganância do domínio territorial, seja pela omissão de políticas públicas e da zona de conforto de quem poderia efetivamente mudar a história.

“Os verdadeiros “filhos da terra” dessa ilha, merecem ter suas histórias registradas para a eternidade”, escreve Caio ao final.

Maria José Fazzini Cardial e sua filha Cecília Fazzini ((Reprodução autorizada pelo autor))

Naufrágio resgatado

A obra foi o resultado do Projeto realizado com o apoio do Governo de São Paulo, Intermeios- Casa de Artes e Livros e Proac – Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo e sua primeira edição é de 2011. Entre os naufrágios de tesouros, só agora pude contemplar tal riqueza e aqui a exponho por meio de modesta resenha.

É evidente que um livro de memórias não pode mudar o curso da história de uma comunidade e de uma Ilha que tinha na pesca artesanal, na comida feita no fogão à lenha e na luz vinda da lamparina uma alegria que se completava em si mesma. Não,  um livro de memórias não muda o curso da história,  nem o futuro. No entanto, tatua para sempre no coração de cada um que se doou – lembrando, falando, narrando, escrevendo, fotografando ou deixando-se fotografar (e mesmo para aqueles que o lêem), um estado perpétuo de felicidade por um tempo vivido que jamais voltará, ou que só será encontrado no fundo de um outro oceano, ou de um outro mundo muito longe daqui.


*Paulo Atzingen é jornalista e fundador do DIÁRIO DO TURISMO

Publicidade

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Recentes

Publicidade

Mais do DT

Publicidade