Leia o artigo escrito por Por Sérgio Pinheiro Marçal e Lucas Pinto Simão, originalmente publicado no site do Conjur, sobre a nova proposta de regulamentação pela UE
No último dia 17 de fevereiro, os autores Sérgio Pinheiro Marçal e Lucas Pinto Simão publicaram um artigo no site da Revista Conjur (Consultor Jurídico), sobre a “Nova proposta de regulamentação pela UE dos marketplaces e inteligência artificial.
O DT leu o artigo, e por acreditar que é bastante pertinente para o setor do Turismo, pediu autorização dos autores para a republicação. Assim, com a autorização, reproduzimos abaixo o artigo. Confira:
“Nova proposta de regulamentação pela UE dos marketplaces e inteligência artificial”
Os produtos devem ser seguros! Este é o princípio básico (quase que universal) adotado e seguido pelas legislações dos mais variados países.
Ainda em 1985, a ONU promulgou a Resolução 39/248, que já indicava: “Os governos devem adotar ou incentivar a adoção de medidas apropriadas, incluindo sistemas legais, normas de segurança, normas nacionais e internacionais, padrões voluntários, além da manutenção de registros de segurança, para assegurar que os produtos são seguros para o uso pretendido ou normalmente previsível” (artigo 9º).
No Brasil, a recomendação da ONU foi atendida e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) é claro ao dispor que “os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores” (artigo 8º) e que “o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança” (artigo 10º).
Todavia, basta dizer que os produtos devem ser seguros? A resposta, aparentemente uníssona, é que não! É necessário dizer 1) quais são os requisitos de segurança, 2) quais os testes necessários no produto, 3) qual a documentação necessária para comprovar a segurança, 4) qual o nível de risco aceitável, 5) o que fazer em caso de descoberta de periculosidade, 6) quem são os responsáveis pela segurança e eventual defeito do produto, entre inúmeros outros pontos. E aí que começam a aparecer as diferenças nas legislações e soluções adotadas por diversos países.
O CDC é muito comemorado como uma legislação principiológica, que já possui mais de 30 anos de vigência e ainda serve como importante instrumento para equilíbrio das relações de consumo no Brasil. Entretanto, em que pese a estrondosa magnitude de mudanças tecnológicas e econômicas nos últimos 30 anos, não houve mudança significativa em relação à normatização da segurança de produtos no CDC.
Por certo, a maior parte das atualizações no que diz respeito à segurança de produtos no Brasil vem sendo implementada por decretos e resoluções de agências reguladoras. Cada setor possui suas próprias autoridades reguladoras; citamos os exemplos abaixo:
— A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela promoção da saúde da população por meio do controle sanitário de diversos produtos, como, medicamentos, alimentos e cosméticos;
— A Agência Brasileira de Telecomunicações (Anatel), responsável por fiscalizar a prestação dos serviços de telecomunicações, aplicar penalidades e emitir normas a serem observadas pelas prestadoras;
— A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), responsável por fiscalizar as atividades da aviação civil no Brasil, especificamente os aspectos econômicos e de segurança técnica do setor;
— A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), responsável por fiscalizar as atividades que integram petróleo e gás natural e biocombustíveis;
— A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que visa regular a produção, transmissão e comercialização de energia elétrica, de acordo com as políticas e diretrizes do governo federal
— A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o mercado de planos privados de saúde;
— o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), responsável pela implementação das políticas nacionais de metrologia e qualidade e por avaliar e fiscalizar o cumprimento das normas; e
— Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), responsável pela elaboração de normas técnicas para a produção, comercialização e utilização de bens e serviços de forma competitiva e sustentável nos mercados interno e externo, contribuindo para o desenvolvimento científico e tecnológico, proteção do meio ambiente e defesa do consumidor. Ressalte-se que é obrigatório o cumprimento das normas estabelecidas pelos referidos órgãos, nos termos do artigo 39, VIII do CDC.
As regras específicas são importantes e necessárias para garantir a segurança dos produtos, mas, discute-se sobre a necessidade e relevância de atualização e complementação das chamadas regras gerais de segurança dos produtos.
Na União Europeia, tem havido constante debate e atualização das normas que tratam de segurança dos produtos (general safety requirements). Em 2001, houve a adoção do “General Product Safety Directive” (GPSD — 2001/95/EC) pelo Parlamento Europeu com “uma obrigação geral de segurança para todos os produtos colocados no mercado, ou postos à disposição dos consumidores” (Considerando nº 6 da GSPD 2001/95/EC).
Todavia, o Parlamento Europeu considera que, para fazer frente aos desafios ligados à digitalização e à crescente quantidade de bens e produtos vendidos online, as regras gerais de segurança dos produtos em vigor já não são adequadas para os desafios digitais e tecnológicos.
Em junho de 2021, foi apresentada uma proposta para instituir um novo “General Product Safety Regulation (GPSR)” em substituição à “General Product Safety Directive (GPSD)”. A proposta tem tramitado no Parlamento Europeu e, em novembro de 2022, foi apresentado o texto acordado entre a Comissão Europeia, o Parlamento e o Conselho durante a última rodada de discussões, sendo esperada a aprovação final ainda em março de 2023.
Os principais tópicos enfrentados pela “General Product Safety Directive (GPSD)” envolvem:
Comércio eletrônico: as plataformas on-line precisarão indicar pessoas de contato responsáveis pela segurança do produto e teriam a obrigação de acompanhar seus vendedores, inclusive reportando para as autoridades acidentes causados por produtos por ela vendidos e que acarretem riscos para a saúde dos consumidores. As autoridades também poderão determinar que produtos inseguros devem deixar de ser comercializados pelos marketplaces;
Pessoa responsável: as empresas só poderão comercializar produtos na União Europeia se tiverem um responsável na União Europeia capaz de responder às autoridades e fornecer a documentação e as informações necessárias sobre a segurança dos produtos;
Recalls: as autoridades terão mais opções para solicitar recalls de produtos de forma mais célere e com mais mecanismos para trazer eficácia com o objetivo de aumentar as taxas de devolução, oferecendo aos consumidores reembolsos, reparos ou substituições dos produtos;
Documentação técnica: Os fabricantes devem preparar documentação para provar a segurança de seus produtos (incluindo detalhes do produto, avaliação de risco e uma lista de padrões usados para mostrar conformidade) a ser mantida por dez anos. Além disso, novos requerimentos passarão a ser exigidos na análise da documentação técnica, incluindo o diferente impacto na saúde e segurança de diferentes gêneros, riscos para os consumidores mais vulneráveis (por exemplo, crianças), conectividade/interconexão com outros produtos, os efeitos de atualizações de software baixados posteriormente, cibersegurança e as funcionalidades evolutivas, de aprendizagem e preditivas de um produto;
E-labelling: não será permitida que a rotulagem eletrônica substitua as bulas físicas, rotulagem e outras informações que devem acompanhar os produtos. Em vez disso, permite expressamente que certas informações sejam fornecidas adicionalmente em formato digital, como um código QR.
As propostas de novas regras de segurança de produtos na União Europeia certamente afetarão as empresas brasileiras que exportam produtos para a União Europeia, mas, além disso, representam uma evolução legislativa voltada ao comércio eletrônico e ao tratamento dos produtos dotados de aplicativos com inteligência artificial.
Em relação ao comérci
o eletrônico, é relevante notar que a proposta da União Europeia não é voltada para trazer uma responsabilidade solidária e integral entre todos os integrantes da cadeia de consumo. Pelo contrário, há previsão de conceitos e responsabilidades específicas e distintas para cada um dos integrantes da cadeia de consumo distinguindo o 1) fabricante, 2) o representante autorizado, 3) o importador, 4) o distribuidor, 5) os prestadores de serviço de atendimento, 6) o operador econômico, 7) o provedor de um marketplace on-line, 8) o provedor de interface on-line e 9) o agente.
Em relação aos temas de inteligência artificial, por sua vez, ficou estabelecido que, na avaliação da segurança do produto dotado de inteligência artificial, deve ser avaliada a evolução, a aprendizagem preditiva e as funcionalidades do produto. Ou seja, o fabricante deverá manter procedimento de avaliação de segurança do produto mesmo nas hipóteses de produtos com capacidade preditiva, avaliando todos os possíveis e futuros usos do produto, e não somente aqueles inicialmente programados.
Estes temas também são foco de atenção no Brasil, sendo que tramitam projetos legislativos específicos visando ao tratamento do comércio eletrônico (PL 3514/2015) e da inteligência artificial (PL 21/2020). Certamente estes são temas que deverão ser enfrentados no Brasil, logo, é essencial uma regulamentação adequada que não restrinja a inovação tecnológica, mas que também continue a assegurar que os produtos disponibilizados ao mercado de consumo sejam seguros!
*Sérgio Pinheiro Marçal é sócio da área de Relações de Consumo de Pinheiro Neto Advogados.
*Lucas Pinto Simão é sócio da área de Relações de Consumo de Pinheiro Neto Advogados.
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*Artigo publicado originalmente no site Conjur, e republicado pelo DT com autorização dos autores.