No final, quem perdeu mesmo com este enxugamento das empresas aéreas foi o consumidor, que passou a contar com menores opções de voo.
por Fábio Steinberg*
Com dezoito quedas mensais consecutivas no movimento de passageiros, em janeiro de 2017, em plena alta temporada, a aviação doméstica tem pouco a comemorar. Do lado da demanda, o encolhimento em um ano chegou a 5,5% e viu sumir 7 milhões de passageiros – o pior resultado desde 2012. Quanto à oferta, as quatro maiores companhias aéreas – GOL, LATAM, AVIANCA e AZUL – reagiram à crise ora ao diminuir rotas e voos, ora se livrando de aeronaves – rebaixando-se assim a níveis de seis anos atrás.
Basta dizer que em 2016 três das quatro concorrentes devolveram 51 aviões. Isto permitiu um aumento da taxa de ocupação para 84,36%, o que à primeira vista equipararia a indústria local aos bons índices do resto do mundo. Mas as aparências enganam. Primeiro, porque nem sempre estas decisões implicaram em prejuízo para a empresa. As vezes ocorreu até o contrário. No caso da GOL, a redução de 17% do número de assentos disponíveis e a reestruturação da malha aérea trouxeram uma melhor receita líquida, atingindo no ano passado o recorde de R$ 10 bilhões. Já a LATAM viu na crise o momento para concentrar esforços e investimentos somente em rotas com altas demandas e taxas de ocupação. Trocando em miúdos, as mais lucrativas.
No final, quem perdeu mesmo com este enxugamento das empresas aéreas foi o consumidor, que passou a contar com menores opções de voo. Foi como se uma padaria reduzisse suas fornadas, e através deste artifício fizesse menos gente com fome ter acesso ao pão. O resultado: multidões de esfomeados que só conseguiriam olhar a vitrine da padaria do lado de fora. No caso da aviação, como indústria de transporte de massa, as consequências desse tipo de decisão são atravancar uma atividade vital para o desenvolvimento econômico do país.
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Ninguém sentiu mais o efeito perverso que os voos regionais. “O transporte aéreo brasileiro teve crescimento significativo no período 2003 – 2015. Paradoxalmente, neste mesmo período, 67 cidades deixaram de ser servidas por voos regionais. Hoje temos apenas 113 cidades atendidas pela aviação regular”, lamenta Dario Rais Lopes, assessor especial do Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil. “Todo o esforço que se está a fazer é para recuperar o número de localidades com voos comerciais, aumentando a cobertura geográfica”, ele conclui.
Afinal, onde foi parar aquela imensa expectativa de transportar 100 milhões de passageiros de avião por ano? Culpar apenas o cenário econômico brasileiro adverso é uma maneira simplista de explicar a situação
Afinal, onde foi parar aquela imensa expectativa de transportar 100 milhões de passageiros de avião por ano? Culpar apenas o cenário econômico brasileiro adverso é uma maneira simplista de explicar a situação. Pesam aqui também diversos fatores estruturais que contribuíram negativamente para afetar a expansão da indústria, e que por isto precisam ser corrigidos com urgência.
Felizmente é isto que começa a acontecer. Enquanto a aviação sonha com um olho fechado a retomada econômica que não depende só dela, mantém o outro bem aberto na correção de distorções que levem a melhores dias logo que sol voltar a brilhar no céu brasileiro.
“É preciso avançar com a diminuição dos custos do setor”, afirma Eduardo Sanovicz, presidente da ABEAR. Ele insiste também na necessidade de aprovar um novo conjunto de regras de direitos e deveres das companhias aéreas e passageiros, alinhadas às globais, visando atrair investimentos e garantir passagens mais baratas.
Nem sempre a situação esteve tão ruim. Entre 2010 e 2012 a aviação comercial brasileira alcançou altitudes inéditas graças a uma feliz combinação de fatores. Primeiro, no rastro do resto do mundo, veio a liberdade tarifária. Ou seja, o governo parou de meter o bedelho no preço das passagens. Segundo, as boas condições da economia e o aumento do poder de consumo permitiram que mais gente pudesse voar. No período, os passageiros mais que triplicaram para 100 milhões, enquanto a tarifa média caiu para 330 reais, quase a metade. As forças de mercado fizeram o Brasil ocupar o terceiro lugar no mundo, tornando-se o oitavo mais competitivo.
As coisas começaram a degringolar a partir de 2013. Diante dos primeiros sinais da crise da economia brasileira, as companhias aéreas buscaram se ajustar em três etapas. A primeira veio através de medidas internas para o aprimoramento da própria gestão. A seguinte mirou a cadeia produtiva, incluindo ajuste da malha aérea, com redução ou suspensão de voos.
A terceira é agora. A turbulência sem precedentes acelerou medidas que se adotadas, diz a ABEAR, conseguiriam dobrar o número de viajantes nos próximos anos. Só que todas dependem da reavaliação de políticas públicas pelo governo. “Além de regras praticáveis para atrair o investidor da mesma maneira como ocorre em outros países, o Brasil precisa encarar seriamente seus gargalos de infraestrutura, paternalismo trabalhista e tutela do consumidor”, comenta a LATAM.
A turbulência sem precedentes acelerou medidas que se adotadas, diz a ABEAR, conseguiriam dobrar o número de viajantes nos próximos anos. Só que todas dependem da reavaliação de políticas públicas pelo governo
Eis as cinco frentes da aviação para o combate:
1ª – Querosene de aviação – o combustível cobrado dentro do Brasil responde por 40% do custo, enquanto no mercado internacional não ultrapassa 30%. A meta é convencer a Petrobrás a igualar os preços nacionais do produto aos internacionais.
3ª – Práticas esquizofrênicas – O Brasil está desalinhado em relação às regras de transporte aéreo mundiais, como quotas excessivas de bagagem gratuita. Fazem parte do mesmo rol procedimentos irrealistas que oneram em demasia as companhias aéreas, como o pagamento por atrasos causados pelo mau tempo, ou políticas de reembolsos pouco realista. Somados, estes “estranhos no ninho” à aviação geral custam R$ 40 milhões por ano. Adivinha quem paga? Sim, as despesas são repassadas ao preço dos bilhetes. No caso das bagagens, é ainda mais injusto: apesar da maioria viajar só com uma mala de mão, acaba por dividir a conta com uma minoria que embarca com bagagem.
Coube à ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil – rever estas disfuncionalidades. A partir de março de 2017, apesar de enfrentar um misto de desinformação e demagogia parlamentar, tudo indica que deve entrar em vigência um somatório de novas condições de transporte aéreo. “Queremos aproximar o Brasil das melhores práticas internacionais e das diretrizes de liberalização do transporte aéreo”, explica Ricardo Bisinotto Catanant, Superintendente de Acompanhamento de Serviços Aéreos da ANAC. Ele destaca entre as principais medidas a desregulamentação da franquia de bagagem despachada e a ampliação da bagagem de mão para o mínimo de 10 kg. Isto deve propiciar a oferta de mais opções de níveis de serviços e preços, estimulando a concorrência e contribuindo para a democratização do transporte aéreo.
4ª – Código Brasileiro de Aeronáutica – falta modernizar a legislação que regula o setor, estacionada em 1986. O mundo mudou. As leis caducaram diante da radical mudança de cenário dos últimos 30 anos. Isto exige a revisão de velhos conceitos. “Muitos dos dispositivos já não são aderentes ao contexto econômico do país e à atual dinâmica do transporte aéreo, muitas vezes dificultando a sua harmonização com o arcabouço legal vigente ou até mesmo inviabilizando a sua aplicação”, declara Catanant, da ANAC. Até aqui, todo mundo concorda.
É a partir deste ponto que reside a maior polêmica que coloca governo e companhias aéreas domésticas em lados opostos: o fim do limite de capital estrangeiro, hoje restrito a 20%
É a partir deste ponto que reside a maior polêmica que coloca governo e companhias aéreas domésticas em lados opostos: o fim do limite de capital estrangeiro, hoje restrito a 20%. É natural que quem atua no mercado não vê com bons olhos a chegada de concorrentes, alguns bastante poderosos. No entanto, na avaliação da ANAC, esta seria uma das principais barreiras à entrada de empresas e de investimentos no setor, restringindo a disputa e potenciais benefícios à sociedade. No debate que ocorre no Congresso Nacional, a agência não só se posiciona favorável à eliminação de qualquer restrição ao capital, como aponta a sua equivalência ao que já existe com sucesso em outros setores estratégicos da economia do país.
5ª. Legislação trabalhista – Também sofre de obsolescência, pois a Lei do Aeronauta não acompanhou a evolução. A prática demonstra que os avanços da profissão têm sido obtidos por acordos coletivos. “Precisamos fortalecer a negociação direta”, resume Sanovicz. Cabe igualmente ao Congresso rever a lei. Quando? Faça sua aposta!
De nada adiantam todos estes esforços se não forem também acompanhados de melhores condições de infraestrutura aeroportuária. “Os desafios intrínsecos ao setor são a continuidade da redução do custo de operação e a expansão da melhoria da infraestrutura, criando possibilidade de exploração de novos mercados e aumentando a acessibilidade da população aos serviços aéreos”, resume Rais Lopes, do Ministério da Aviação Civil, no que concorda também Bisinotto, da ANAC. Neste sentido, a concessão de aeroportos, iniciada em 2011, tem demonstrado o acerto ao atrair investimentos e tecnologias. Hoje são 10 aeroportos concedidos à iniciativa privada, 4 deles em processo de leilão este ano.
Diferente do passado, quando pedir subsídios ao governo até fazia parte do DNA das companhias aéreas então existentes, hoje nenhuma pede socorro financeiro. O que elas buscam é uma visão governamental mais antenada com o que acontece no mundo. “A GOL é favorável a medidas que aproximem a aviação brasileira dos padrões internacionais, facilitando a integração com o mercado global”. Este é o discurso oficial da empresa, e que poderia ser assinado por qualquer dos seus concorrentes.
De nada adiantam todos estes esforços se não forem também acompanhados de melhores condições de infraestrutura aeroportuária.
O que as empresas esperam do governo? “O principal desafio é a retomada do crescimento econômico para que a aviação comercial brasileira volte a crescer. O segundo é preparar a infraestrutura aeroportuária para sustentar esse crescimento”, avalia Tarcisio Gargioni, vice-presidente da AVIANCA. “Primeiro, é preciso levar em conta que aviação não é atividade de elite, mas sim transporte de massa e ferramenta de desenvolvimento. E segundo: garantir condições de competitividade para as brasileiras iguais às praticadas no mercado internacional”, conclui Sanovicz, da ABEAR. As aeronaves estão na pista. Agora só falta decolar.
*Fábio Steinberg é jornalista