Por Osvaldo Alvarenga
Aqui em casa nós gostamos de andar; toda a gente o sabe. Andamos bastante. Há dias em que caminhamos 10, 12 km. Não é o habitual. Mais comuns são caminhadas que variam entre 3 e 6 km. Os percursos são incertos e as andanças casuais. Se o passo é lento e se as paradas são frequentes, ainda que seja sempre melhor do que não caminhar, tenho dúvidas quanto aos benefícios de um passeio assim para a saúde. Por isso mesmo, decidi fazer caminhadas regulares, dia sim, dia não, de aproximadamente 6 km, com escadas e subidas íngremes pelo caminho. São 40 minutos, esses, sim, acelerados, para o coração bater com força – mas peno com a minha indisciplina: já falhei uns tantos dias.
Numa dessas manhãs, fiz um percurso diferente. Coincidiu, foi no dia em que voltaram as aulas presenciais em Portugal. Voltava também o trabalho nos escritórios. A Iêda saiu cedo de casa para o seu primeiro dia na nova sede da Operação Nariz Vermelho, ONG em que trabalha, e eu a acompanhei até certa altura do caminho: ela para o Cais do Sodré, eu em direção ao Palácio São Bento; fomos juntos até a Av. Dom Carlos I. Saímos um pouco antes das oito, o Tejo coberto pela bruma, promessa de sol, a manhã fresca e as ruas vazias. Pouco antes da Igreja de Santos-o-Velho, passou por nós mãe e filha, vinham pela rua, cada uma na sua bicicleta; uma grande e outra pequena. Na menor, a estudante de seis anos, sete no máximo, de uniforme, capacete e mochila às costas, visivelmente animada com o seu primeiro dia de aula, pedalava rente à borda da calçada; na maior, a mãe, capacete na cabeça, afastada meio metro da calçada e meio metro atrás da filha, servia de anteparo. Observamos as duas enquanto desciam a Ribeiro Santos que, apesar de não ser íngreme, tem inclinação suficiente para acelerar o giro. A miúda soltou um grito agudo quando começou a descer mais rápido – sobressalto e deleite. E assim foram as duas: filha à frente, mãe incentivando e protegendo atrás.
Lisboa tem 120 km de ciclovias espalhadas pela cidade, mas não naquele ponto onde encontramos as duas. Ali, a rua tem calçamento de pedra e é relativamente movimentada; passa carro, passa autocarro e passa elétrico. Alguém poderia julgar irresponsável a mãe. Não me pareceu. Atrás delas formou-se pequena fila de três ou quatro carros à espera do ponto ideal de ultrapassagem. Ninguém buzinou. Ninguém mostrou irritação. As ciclistas avançavam à velocidade da menor, e os condutores, conformados, seguiam o cortejo zelosamente.
Outro dia, contornando o Jardim da Estrela pela Rua de São Bernardo, passei por uma fila comprida, ruidosa e bem organizada em pares e em ordem crescente, de umas 30 crianças, talvez mais. Infantes d’alguma creche, uniformizados, com aquelas adoráveis batas, cada um com a própria merendeira, deixavam o jardim. Foram lá, talvez, para o recreio ou para um piquenique especial. Quando os vi, voltavam para a escola. Eram três os professores responsáveis pela excursão. Contrastavam os pares de mãos dadas, ocupados com eles mesmos, em conversas eufóricas, desatentos em tudo à volta, com os professores, coitados, tensos, à frente, ao meio e atrás, com apitos e brados, dando ordens, para manter na linha o grupo. Uns quantos passos adiante, na Pedro Álvares Cabral, azáfama no pátio do jardim de infância São João de Deus. Outras crianças, outros uniformes e batas; idades mais ou menos iguais.
Com frequência, nessas caminhadas que faço e nos sítios onde vou, vejo nos parques, nas praias e nos museus, acompanhados de professores, grupos de estudantes, sobretudo crianças pequenas, pingos de gente, aos cinco, seis, sete e oito anos, em atividades educativa, desportiva ou meramente recreativa. E aqui no Tejo, desde a Ponte 25 de Abril até a Torre de Belém, entre as Docas de Alcântara e as Docas do Bom Sucesso, nas várias marinas, mais de uma escola de vela, e, em cada uma, meninos e meninas, dos sete anos pra mais, aos finais de semana e todos os dias durantes as férias, nos seus Optimist, aqueles veleiros mirins, subindo e descendo o rio, fazendo manobras e brincando ao vento. É frequente, na outra margem, na Costa da Caparica, ou seguindo a Marginal de carro, ou de comboio pela Linha de Cascais, logo adiante, nas praias de Carcavelos, São João do Estoril e, mais à frente, no Guincho, miúdos, às vezes, de cinco anos, fardados de neoprene, até mesmo no inverno, fruindo nas ondas, aprendendo a surfar.
Apesar do que eu digo, na verdade, vejo poucas crianças nas ruas. Tenho a impressão… tenho a impressão não, acabei de conferir os dados do censo de 2020: em Lisboa, há 1,6 adulto maior de 64 anos (28% da população) para cada criança com menos de 15 (16%). Somos uma comunidade envelhecida num continente em processo de obsolescência. Nem por isso as crianças aqui têm poucas ou desinteressantes oportunidades. Muito pelo contrário. Provavelmente, justo por serem poucas, pelo grau de desenvolvimento humano alcançado dentro da União Europeia, devido aos desafios que o envelhecimento populacional impõe, aqui, as crianças recebem muita atenção de pais, sociedade e governo. São imensas as possibilidades para os jovens na Europa.
Hoje, no dia em que escrevo, meu velho pai faria 118 anos. Hoje, venturoso dia, nasceu o Felipe, bisneto dele, meu sobrinho-neto. Não é o primeiro. É aquele que, se depender do empenho dos pais, virá viver para cá, em Lisboa, ao pé de nós. Ontem, bolsa estourada, hoje, parto – e sei que muitos amanhãs também –, tenho passado os dias querendo estar em São Paulo. Lembro o quanto eu corri pelas ruas de Juiz de Fora, há quase 40 anos, para ser o primeiro a ver a mãe dele recém-nascida. Na caminhada que fiz hoje, não corri, vagueei pela margem do Tejo, sem pensar em nada senão no dia em que for ele, Felipe, um desses miúdos que vejo por aqui, numa adorável bata, andando de bicicleta, subindo e descendo o rio num caixote à vela, brincando de pegar onda nas águas geladas do Atlântico Norte, sob a luz de Lisboa. Para ele, tirei uma foto do rio e da ponte no ocaso do dia em que nasceu. Acho que o Felipe será feliz em Lisboa.
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