Quando falamos ou ouvimos as palavras Vinho e Rio Grande do Sul imediatamente uma outra palavra nasce dessa fricção de sons, como uma faísca: italianos.
Por Paulo Atzingen*
Quando conhecemos mais de perto a epopeia dessa gente nos seus primeiros anos de Brasil nos surpreendemos como a formação da linhagem de um povo se fez ao enfrentar sacrifícios, barreiras naturais, tempo ruim, animais selvagens e doenças em busca de dias melhores. Vivemos tempos pavimentados e cheios de conforto, mesmo com coronavírus.
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O DIÁRIO DO ENOTURISMO está percorrendo essa trilha novamente para trazer ao leitor um pouco dessa espetacular história por meio do relato de seus descendentes.
A saga dos italianos no processo de implantação da cultura da uva e do vinho no Brasil tem a assinatura da família Valduga, e em especial a digital de Remy Valduga.
Testemunha ocular e história viva da chegada dos italianos ao Brasil e das primícias da vinicultura em terras tropicais, o próprio Remy falou ao DIÁRIO:
“Meu bisavô chegou em Porto Alegre em novembro de 1876 com cinco filhos e mais 18 famílias. O nome do navio era Salier. Nesse navio que partiu da Itália com 800 imigrantes, a maioria foi trabalhar nas fazendas de café no interior paulista. Meu avô dividiu o porão com cabras, porcos e galinhas”, afirma Remy ao telefone.
Remy completou este ano seu octagésimo aniversário. Disposto a contar sua história, percebo a generosidade na forma e no conteúdo de sua narrativa. Guardou na memória o que seu bisavô, Luiggi Valduga lhe contara.
Relata Remy que boa parte da história dos italianos e em especial da sua família consta em seu livro “Sonho de Um Imigrante”, que escreveu depois que os visitou na região de Terragnolo, fronteira com a Áustria. “Sonho de Um Imigrante, não escrevi antes porque não tinha informação da Itália. Aí descobri os parentes em Terragnolo, divisa com Áustria. De lá, foram me mandando informações, fiz também muita pesquisa”, explica.
Entre uma fala e outra ele faz uma pausa. Visualizo-o em pensamento sentado em sua sala no Vale dos Vinhedos. Ele integra o fruto de uma grande árvore. A figura de uma videira representa muito bem a forma como as famílias italianas foram esparramando seus ramos pela serra gaúcha, especialmente em Bento Gonçalves. A vinha encontrou o seu lugar, especialmente no Rio Grande do Sul, na Serra. Seja por suas condições climáticas, seu solo, seu “terroir”, os vinhedos encontraram quem se propôs a cultivá-los: os italianos e seus descendentes.
Sair da Miséria
Pergunto quais foram as principais razões desse êxodo ao novo mundo e ele responde com serenidade: “O sonho era sair da miséria, eles sofreram muito como colonos ao norte da Itália, morriam de fome e de uma doença chamada pelagra, provocada pela desnutrição”, detalha.
Pesquiso e descubro que seus ancestrais viviam sob o cetro de Vitor Emanuel III, que entre outras coisas consentiu que Benito Mussolini implantasse o regime fascista na Itália. Mas isso são outras uvas.
Seu bisavô e os outros imigrantes permaneceram 40 dias no galpão – em quarentena – para, segundo Remy, curar dos piolhos e as possíveis doenças herdadas dos extensos dias à bordo.
Depois desses 40 dias, as famílias foram levadas para a cidade de Montenegro, município mãe da colônia Dona Isabel, que hoje é Bento Gonçalves.
“De Montenegro até aqui são 90 quilômetros, de mata virgem, subida íngreme, povoada por macacos, pássaros, serpentes e uma grande tribo de tapuias, à época. Os índios roubavam o paiol”, enumera Remy e lembra que esses relatos estão no livro.
Remy é um dos primeiros viticultores do Rio Grande do Sul, foi um dos fundadores do Vale dos Vinhedos e integra a cooperativa Aurora há 56 anos. Hoje ele não planta mais e se dedica à família, à esposa Adi Valduga e à literatura. Tem oito livros publicados e atualmente escreve sua biografia.
Livros
Seu primeiro livro foi o romance O Caçador de Caramujos, escrito no final de 1985, retratando a década de 1940 na região de Bento Gonçalves. No ano seguinte lançou a História de Catarina, livro que já vendeu quase 40 mil exemplares. “Vendi porque fiz muitas palestras nas escolas falando sobre a imigração italiana para nossa região”, diz ao DIÁRIO. Em 1989 lançou o livro de contos “Piereto”. Em 1994 lançou outro livro de contos, o “Os Brincos de Dona Irene”, também de contos. Em 2005 ofereceu outro tributo à Bento Gonçalves publicando o livro Sonho de um Imigrante, içando do fundo da história a saga das primeiras famílias da antiga colônia Dona Isabel.
Remy Valduga nasceu no Vale dos Vinhedos em 13 de maio de 1940 e é onde vive até hoje. É filho de João Batista Valduga e Francisca Festa. Com Adi teve dois filhos, Rogério Carlos e Roberto Valduga e quatro netos.
Ouvir um descendente da linhagem dos Valduga é estar diante da autenticidade mesmo que o tempo e o espaço embacem o vidro dos fatos a que chamamos de verdade. Ele guarda o sotaque do dialeto de Vêneto, e somente ele – e seus contemporâneos – têm a autoridade para falar da missão cumprida dos italianos na Serra Gaúcha e no Rio Grande do Sul. Remy cumpriu. Remy falou.
*Paulo Atzingen é jornalista