Bodes Históricos por Washington Fajardo*

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Em 2016, às 22:43 da noite de 29 de setembro, uma quinta-feira, começava nos estúdios da TV Globo o último debate entre os seis candidatos à prefeitura de São Paulo. Último debate, pois o candidato do PSDB, João Dória, ganhou no primeiro turno, dia 2 de outubro, um domingo, com vitória histórica na cidade, tendo obtido 53,29% dos votos válidos.

 

O debate conduzido pelo jornalista César Tralli terminou aos 39 minutos da sexta-feira, 30 de setembro. Disse o candidato vencedor nas suas considerações finais:

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Tralli, parabéns, à Rede Globo também, às candidatas e aos candidatos. Quero me dirigir a você, que está em casa. Sou um gestor, sou um administrador, um empresário que vai atuar na política para resolver os problemas da cidade de São Paulo. Sou filho de nordestinos, sou filho de um político que foi cassado e exilado pelo golpe de 64. Mas nesse momento, sou um gestor, e é aquilo que a cidade precisa. Um administrador para resolver os seus graves problemas e ter um olhar de eficiência, não apenas um olhar de constatação, mas um olhar de realização para a periferia, para a população mais pobre, mais humilde que precisa de ajuda, de apoio na saúde, na educação, na habitação, mobilidade urbana e, sobretudo, geração de empregos e oportunidades. Boa noite.

 

Câmeras registraram à 1:56 da madrugada da mesma sexta, 30, uma dupla de pichadores, aparentemente um casal, atacando o Monumento às Bandeiras, obra colossal de Victor Brecheret, inaugurada por ocasião das comemorações do IV Centenário da cidade, em 1954, um dos mais importantes marcos da paisagem urbana de São Paulo dentre inúmeros outros ícones. Munidos de um compressor portátil e uma mangueira com aspersor, conseguiram pintar em verde, amarelo e vermelho até as partes mais altas do conjunto escultórico, com quase 11 metros de altura, situado entre o Parque do Ibirapuera e a Assembléia Legislativa. Além desse, foram pichados o monumento do Borba Gato, de 13 metros de altura, localizado em Santo Amaro, e a fachada da Secretaria Estadual de Educação, na Praça da República.

 

Esses eventos repercutiram muito na imprensa e na sociedade, sendo esta espremida por uma estéril polarização ideológica que tem sido a tônica nacional desde as Marchas de Junho de 2013, catalisada também pela Lava-Jato e pelo impeachment de Dilma.

 

No sábado, o então candidato Dória, acompanhado por Bruno Covas, grava um vídeo para as redes sociais e, com o  seu peculiar estilo assertivo, diz que combateria com autoridade a destruição da cidade de São Paulo, afirmando que não permitiria mais a vandalização do patrimônio público e, enfim, que colocaria a guarda civil metropolitana para trabalhar com vigor.

São Paulo - O Monumento às Bandeiras, localizado na entrada do Parque do Ibirapuera, amanheceu pixado com tinta colorida. (Rovena Rosa/Agência Brasil)
São Paulo – O Monumento às Bandeiras, localizado na entrada do Parque do Ibirapuera, amanheceu pixado com tinta colorida. (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Em 2018, à 1:24 da madrugada de segunda-feira, 9 de abril, que seria o primeiro dia de trabalho do novo prefeito, câmeras capturaram mais uma vez a ação de uma dupla de pichadores, homens aparentemente, com compressores, mangueira e aspersor, escrevendo em letras monumentais, com cerca de 8 metros de altura, dizendo “Olhai por nóis” (sic) na fachada do Pateo do Collegio, no Centro de São Paulo. Durante toda a ação de pouco mais de um minuto, uma terceira pessoa, uma mulher, parecia registrar o feito em vídeo. Ao mesmo tempo que rapidamente vandalizam a edificação, acordam e assustam pessoas em situação de rua que contavam com a fachada como cabeceira de suas duras camas.

 

Uma vez mais, repercutiu muito na impressa e na sociedade. Mas, desta vez, não teve inserção do novo prefeito nas redes sociais, talvez por que o estilo de Covas, o alcaide não diretamente escolhido por 3.085.187 votos válidos, não seja o mesmo que o de João Dória que, após um ano, três meses e sete dias, no último sábado, 7 de abril, renunciou à prefeitura para concorrer ao governo do estado.

 

Haveria uma mente planejando essas ações coincidentes? Não se trata do mesmo modus operandi? Ou trata-se de uma performance?

 

O fato absoluto é que as investigações de 2016 sobre o caso de vandalismo não tiveram resultado. Assim como as promessas de campanha. Constata-se também que tempo não é um valor para a necessária reabilitação da vitalidade dos centros urbanos brasileiros. Constata-se que até o tempo histórico está apertado entre ordens unidas ideológicas que não conseguem reconhecer a abissal crise da sociedade urbana brasileira e, portanto, não apresentam soluções, processos de transformação, apenas uma infernal imutabilidade sobre os problemas da urbanização.

 

Até São Paulo, a cidade da pujança nacional, oferece no lugar da sua gênese de significado, sua alma mater, o terror da desumanização e do menosprezo à vida coletiva pela inércia de sua ociosidade urbana. Não se trata da população em situação de rua em si, mas a deseconomia e o abandono de um território monumental que permite interpretar a constituição dos paulistanos e parte da história do Brasil, que explica a inserção do país na modernidade e sua capacidade plena de estabelecer novos paradigmas estéticos e culturais para a humanidade.

 

Mas seja em administrações de “esquerda” ou de “direita”, os centros históricos continuam abandonados. Seriam os polos políticos também periferias longínquas cujo deslocamento implica em tempos inalcançáveis?

 

Esvazia-se a civilização brasileira pelo esvanecer dos centros urbanos.

 

Que a vandalização por meio da pichação tem por finalidade tomar posse e privatizar a paisagem urbana da cidade, um indelével bem público, é também fato observável. Paradoxalmente, converte-se o pichador, ou o interventor, em parte mimética do sistema excludente que ele, talvez, pretenda denunciar. Não há generosidade. É uma operação da ganância.

 

Importante separar a ação artística. O artista, ao capturar o espaço público por meio da intervenção, coloca aquele estrato da cidade sob seu juízo e plano da arte, inserindo-o em outro plano intelectual e levando à reflexão, seja ela  racional, seja pelo espanto da contundência e, com isso, ajudando-nos a ler as sobreposições urbanas mais nitidamente. Dessa forma, deixa a nós  as opções de  avançar ou de enfrentar as imperfeições. Ou, ainda, de nos calarmos casmurramente.

 

O pichador não faz isso. Ele compete para absorver a cidade como sua posse individual. A pichação é uma especulação imobiliária invertida, em que, ao depreciar o valor coletivo, obtém ganho o algoz da fachada. Que outro objetivo haveria ao filmar a pichação senão o de afirmar autoria e propriedade?

 

Construção feita entre a década de 50 e 70, cientificamente designada como “falso histórico” por se tratar de arquitetura que emula os aspectos da construção original, o Pateo do Collegio abriga o sítio arqueológico que contém as ruínas em técnica de taipa de pilão do colégio jesuíta da catequese dos nativos indígenas. Por fim, converteu-se em lócus e marco paisagístico do nascimento da maior metrópole do Hemisfério Sul, cujo embrião foi o Real Colégio de São Paulo de Piratininga. Continua a pertencer à ordem da Companhia de Jesus, além de abrigar  o Museu Anchieta, o Auditório Manoel da Nóbrega, a Galeria Tenerife, a praça Ilhas Canárias (Café do Pateo), a Igreja Beato José de Anchieta (que abriga o fêmur de José de Anchieta), a Cripta Tibiriçá e a Biblioteca.

 

Falta capacidade de articulação institucional aos governos das administrações da cidade para promover a reocupação desta região tão relevante e com potencial para inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento, mais coerente com as necessidades de um planeta em aquecimento e de um povo esgarçado  pela polarização política. Limpem a pichação, investiguem sua execução, mas não a transformem no bode expiatório da incompetência urbana.

 

Para inspirar, vale a leitura da encíclica ambiental feita por outro jesuíta, o Papa Francisco, chamada Laudato Si’ – Sobre O Cuidado Com a Casa Comum.

 

143. A par do património natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É preciso integrar a história, a cultura e a arquitectura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais directamente, pede que se preste atençãàs culturas locais, quando se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente.

*Arq.Futuro 2018 

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