Atotô, Obaluaiê! – Crônica de Osvaldo Alvarenga*

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Tomei muita água fluidificada e banho de pipoca na minha infância… Acho que já contei aqui essa história. Se contei, não tem importância. Parto do mesmo início para chegar noutro final. Ia um senhor lá em casa, acho que todos os domingos, para o passe e fluidificação da água colocada num jarro, que eu tomava aos poucos, todos os dias, ao longo da semana. Eu gostava do velhote. Não gostava da visita, sempre ao final da tarde, quando a brincadeira na rua ia no auge. Ficavam os amigos com os piques-bandeiras e os piques-esconde, enquanto eu, só, esperava no quarto pelo passe. O rito era breve; para mim, durava um século. Ao final, voltava correndo para a rua.

Houve uma época em que, nos sábados à tarde, dos fundos de casa, ainda em Matias Barbosa, eu via, a distância, os colegas da escola e os amigos da rua, todos juntos, bem arrumadinhos, brincarem no pátio da igreja. Não entendia porque eu não estava junto deles: foram pro catecismo – me explicavam –, você nem batizado é, não pode ir à igreja. Me incomodava não ter, como todo mundo, padrinho e madrinha. Do catecismo eu nada sabia. Ficava a indignação: mãe, por que não posso ir lá brincar com eles?

Durante a infância, até a puberdade, repetidas vezes, tomei banhos de pipoca. Nada além de água e pipoca; sem sal nem açúcar. Estoura o milho com o mínimo de óleo e ferve a água, como se fosse fazer um chá de pipoca. Morna, a infusão é usada para o banho. Há quem coe antes. Lá em casa não. No boxe forrado com um lençol branco, a mãe jogava a água com pipoca e tudo sobre mim. Depois, recolhida, a pipoca era jogada na terra. É o banho de Omulu, para limpeza de toda carga negativa e proteção.

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Isso porque fui uma criança muito doente. Desenganado antes dos dois; acometido por vírus e bactérias, desde bebê, quase tudo me pegou: caxumba, catapora, sarampo, reumatismo infeccioso; e, crescido, depressão, artrite, tendinite, bursite, dermatite, foliculite… Tive e tenho febres frequentes, muitas vezes sem razão aparente, e dores crônicas que sempre me seguiram. Já estou acostumado. São doenças contagiosas, inflamações e achaques característicos dos filhos de Obaluaiê ou Omulu, como queira. É a explicação. Na altura, meus pais seguiam a Umbanda, e os banhos de pipoca e passes eram considerados indispensáveis ao meu bem-estar. Devo esclarecer que mãe e pai nunca foram fanáticos intransigentes. Os ritos eram acompanhados de remédios, e as idas ao terreiro, tão frequentes quanto as visitas ao médico.

Para os iorubás, quase sempre, Obaluaiê e Omulu são a mesma entidade, mas têm particularidades: o primeiro caracteriza a juventude do orixá; o segundo designa o velho, o velhíssimo, senhor dos mortos, guardião dos cemitérios e rei da terra que, ao nascer, trouxe as moléstias e as pragas. É, por isso, o dono das doenças, das epidemias e da tristeza. Paradoxal, é também o purificador, aquele que consubstancia, equilibra e restaura. Assim, ele é a cura, aquele que afasta o mal para restituir a saúde. É quem governa a vida e a morte.

Omulu é, talvez, o orixá menos compreendido e, certamente, o mais temido. Muito mais agora. Manifestação dele sobre o desequilíbrio do planeta, crêem, o Novo Coronavírus é a peste que vem para evitar o mal maior. Não por vingança. Omulu não é mau… nem bom. Na tradição iorubá, as divindades não são boas nem más, são forças sobrenaturais que, para cumprirem seu papel, intervêm nos mundos. Como os humanos, são seres complexos que podem fazer o bem e o mal. São crenças. Nem melhores nem piores. Valem o que valem e, desde que não atropelem as leis dos homens, toda a gente tem o direito de crer no que quiser. Ao menos deveria ser assim.

Há uma campanha bem-sucedida de demonização das religiões de matriz africana. De pacífico, terra de integração cultural e diversidade, o Brasil revela-se racista, preconceituoso e intolerante. As notícias frequentes de invasão e destruição de terreiros e centros espíritas, e de violência e perseguição aos seus praticantes, confirmam. Ainda menino, a religião dos meus pais nunca foi uma questão. Na rua ou na escola, os meus colegas espantavam-se quando eu explicava que não ia à igreja porque não era batizado. Não me lembro de ter sofrido preconceito por isso. Hoje, quando a fúria obscurantista cai sobre as minorias religiosas, penso primeiro nas crianças, vítimas inocentes do proselitismo de fanáticos sem compaixão. São pessoas doentes e desequilibradas. Quem nesse mundo pode levar embora os males dessa gente?

Atotô, meu Pai.

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