Cosmópole – por Oswaldo Alvarenga*

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Surpreendo-me com a alegria que sinto por viver em Lisboa. Tenho imenso prazer ao andar pelas ruas de cidade tão portuguesa e, ao mesmo tempo, tão multicultural. Pequena, cheia de vida e cosmopolita. E, creio, é na Mouraria onde essas características estão mais evidenciadas. Bairro histórico, no avesso da colina fundadora, formado, logo após a conquista cristã, para acomodar fora da cidadela os mouros, hoje, liga a praça Martim Moniz ao Castelo, mantém preservada a arquitetura e a malha urbanística de outrora, guarda algumas preciosidades entre as casas seculares, vielas, escadarias e largos; e ali trabalham, vivem e convivem portugueses, chineses, bengaleses, indianos, paquistaneses, moçambicanos, brasileiros, dizem, ao todo, mais de 50 nacionalidades coabitando a mesma zona — sem contar os turistas.

Nos anos sessenta do século passado, vieram os migrantes desterrados com o fim, ou o prenúncio do fim, das antigas colônias na Índia e Macau; nos anos setenta, em razão do 25 de Abril, os retornados de África e, nos oitenta e noventa, muitos mais apareceram, trazidos pelos primeiros ou no rastro desses, para coadjuvar no desenvolvimento de Portugal após admissão na Comunidade Econômica Europeia; e, com o mesmo propósito, em levas, a partir daí, brasileiros e eslavos juntaram-se aos pioneiros. Nos anos dois mil, o maior salto das imigrações, somados aos que aqui estavam, chegaram bengaleses e nepaleses; todos antes do boom turístico, há quase dez anos, quando, por módicos que eram os aluguéis na Mouraria, o bairro acolheu muitas dessas famílias. Depois, mais nações, uns quantos curdos e venezuelanos refugiados da tirania e da miséria, e outros, sobreviventes de guerras, perseguições e conflitos, nacionais de 40 países foram acolhidos. Hoje é diferente, como em todo o casco histórico, com os aluguéis pela hora da morte, os novos inquilinos são obrigados a buscar sítios alternativos, quase sempre distantes, em zonas menos famosas. Ao todo, são centenas de milhares, metade da cidade.

Para além das nacionalidades, há, ali, todo tipo de gente, e as religiões compõem o mosaico: cristãos, mulçumanos, budistas, hindus, siques, esses últimos, fáceis de reconhecer os homens, sempre de turbantes alaranjados ou azuis e quase sempre barbados, são muito presentes na região, sofreram discriminação no tempo da “guerra contra o terrorismo”, após os atentados do 11 de Setembro, em Nova York, Washington e Pensilvânia, e, anos depois, com os atentados em Londres, Paris e Madrid. Chamados a esmo de “Bin Laden” e “taliban”, foram muito hostilizados em Lisboa. Completo equívoco. Preconceito absurdo. Não há laços entre siques e muçulmanos fundamentalistas senão o fato de que, eles também são vítimas contumazes da Al-Qaeda e do Daesh. Ao menos aqui, aqueles foram outros tempos. Suponho que a convivência, hoje, seja pacífica. Vejo nas muretas dos canteiros da praça Martim Moniz e nas esplanadas dos tantos cafés àquela volta, sentados, homens de turbantes e, outros, de toucas ou gorros de crochê, kufis de diferentes cores e estilos, as túnicas também variam, e mais ainda variam os traços físicos, assim como as línguas que ouço ao caminhar pelo bairro.

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No sopé da Mouraria, na zona do Martim Moniz, no entorno da praça, a diversidade é grande. Dia destes, à saída do Zé da Mouraria, tasca famosa pelo bacalhau, onde vamos pelos bifes ao alhinho, no cruzamento estreito entre as ruas Capelão e João do Outeiro, vejo um casal de rapazes que, de mãos dadas, levam a passear o cão, e, no sentido oposto, na direção do bairro, uma senhora completamente coberta pelo niqab que caminha, de mãos dadas, com um garoto uniformizado; suponho, o filho voltando da escola. Abundam os salões de apelo afro, lojas chinesas, mercados de produtos exóticos, importados da Ásia e África, sortida variedade de artigos, restaurantes de comida típica portuguesa, chinesa, vegana, goesa, indiana, bengali, italiana, angolana e cabo-verdiana, marisqueiras; muitos kebabs e alguns sushis; um que é especializado em noodles, outro em carne halal; li que também tem restaurante kosher, e, certamente há comida brasileira, eu é que não procurei. Há esplanadas de cafés sem álcool próximas a outras que servem bebidas — lado a lado, uns tomam chá, outros bebem cerveja. São muitas cores, sons, cheiros e sabores num só lugar. Para mim, sem dúvida, o Martim Moniz e a Mouraria estão entre os passeios mais prazerosos em Lisboa.

(Crédito: João M. Soares – Getty Images)

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Subo em direção ao castelo. A subida é íngreme, após o almoço, exige coragem. Mais ao topo, a raiz lisboeta do bairro predomina: ainda que, de vez em quando, cortado pelo inglês, francês ou castelhano, o português fala mais alto. Começo na Baixa, na rua da Madalena em direção ao largo Adelino Amaro da Costa. Logo no início da caminhada, a Igreja de São Cristóvão, originalmente do séc. XIII, depois de incêndio, reconstruída no séc. XVI, e, no séc. XVII, restaurada com intervenções, resistiu ao terremoto de 1755, é, pois, a igreja revestida em talha dourada que temos hoje. Quero andar, escolho o caminho mais longo. Sigo, em frente, até à rua das Farinhas, antes, observo um armarinho, Adriano Duque, dos mais antigos, quantos anos terá?, vendem coisas do arco-da-velha. Vou para o Largo da Rosa, lá, é certo, ao banho de sol, há sempre um antigo morador com quem puxar conversa; um respiro antes de continuar a subida. No largo, conservados, velhos tanques públicos, onde, não faz tanto tempo assim, lavadeiras e donas de casa ocupavam-se com as roupas; a igreja de São Lourenço, do séc. XIII, gótica e barroca, está fechada, e, contíguo, o Palácio da Rosa, reconstruído após o terremoto, esse é do séc. XVIII, também fechado, carecem de cuidados. Vou pelas Escadinhas da Costa do Castelo, viro à direita, tenho de voltar, contornar toda a vertente até a rua Bartolomeu de Gusmão para chegar ao Castelo. Antes de deixar a Mouraria, observo as casas e o traçado das ruas dessa vetusta cidade. É só contentamento.

De passagem pela Alfama, primeiro burgo, até há pouco, povoação absolutamente típica, agora, alma em metamorfose, colonizada por forasteiros, outros estrangeiros, de outra cepa, chegados com os turistas e com os golden visas, expatriados ricos e remediados: franceses, ingleses, escandinavos, brasileiros, chineses, angolanos e russos que, em quantidade, compraram casas e prédios — muito mais compraram os portugueses, incorporadores e investidores dos serviços de hospedagem —, descobriram o bairro e vieram por gozo, deleite e trabalho, por fortuna, engrossar o caldo cultural lisbonense (e nem falei do povo cigano, chegado há cinco séculos, a maior minoria étnica da Europa, não duvido que o seja também em Portugal, nem citei os judeus que por cá sempre estiveram: são todos portugueses).

Hoje não entro no Castelo, vou para a Graça. Sigo pela porta e pátio de Dom Fradique, onde posso avistar uma das antigas torres e restos originais da muralha da alcáçova, do séc. XI, construídas pelo mouros; o que faz-me pensar na formação desta cidade: o sempre chegar de estrangeiros, a miscigenação em camadas, o eterno amalgamar de gentes…

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