Magal – por Osvaldo Alvarenga*

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Tenho acordado cedo todos os dias. Muito cedo. Entre às cinco e às seis da manhã. É Magal que não me deixa dormir. A mim nem mais ninguém na vizinhança. Ela reclama atenção. Quer cuidados, quer, sei lá, tão logo nasce o sol, companhia para andar por aí. Ela estava aqui no dia em que cheguei à cidade. Alegria para a minha sogra que veio comigo, saudosa dela por longas semanas separadas. Surpresa para mim que não a conhecia. Desinibida, apresentou-se logo; nos recebeu com festa. A afeição foi imediata. Agora, aos poucos, vou conhecendo-a melhor. Apesar de toda a simpatia, ainda mantenho certa distância. Ela insinua-se, eu resisto. Malandra, noite dessas, acho que foi no sábado passado, desapareceu, voltou tarde para o almoço – nessas horas preocupa-nos. Ninguém em casa fica tranquilo quando ela some. Sabe-se lá para onde vai e com quem anda nesses dias em que desaparece sem dar notícias.

É que Magal tem lá seu feitio. Livre, sai com qualquer um. É só chamar, oferecer um agrado, um sinal qualquer, e ela vai. Às vezes, sai em bandos, se mete em terrenos baldios, no meio do mato, vai lá cheirar o quê? E tem fixação por motos e bicicletas. Se passa uma, sai logo atrás. Arrisca-se a ser atropelada, agredida, a machucar-se e também a machucar alguém. E não adianta censurá-la, dizer para não ir, é irresistível para ela. Tolerante, aceita o desprezo e, até, a agressividade, ainda assim, submissa, continua a seguir seu verdugo. Mas por que faz isso? E tem lá suas manias. Escolhe com inflexão o que come. Exigente, aceita bem carne e ossos. De frituras também gosta. E arroz; e biscoitos. Feijão não come. Ração? Só com leite. Coisa de cão nutella. Mas Magal é uma vira-lata da gema. A vira-lata que adotou a minha sogra.

Dona Iaiá, a minha sogra, não tem nenhum apreço por cachorros, nunca quis ter um em casa. Gosta mesmo é de passarinho, e os cães espantam os bichinhos. Não sei como a Magal ficou tão íntima. Dizem, um dia seguiu alguém até o portão; depois, descobriu um jeito de invadir a casa pela grade da garagem. Apareceu uma vez, e outra, e outra mais. Veio na hora do almoço e ao entardecer. Veio cada vez mais amiúde e foi ficando. Hoje tem seus panos, tapete, pote de comida e de água na porta da cozinha. Aos poucos vai conquistando espaços em casa. Se é hora do almoço, avança copa adentro, quer o seu quinhão. Se alguém manda ela pra fora, recua; só um pouquinho. Fica por ali, parada, feito esfinge. Depois da nossa refeição é a vez dela. Na porta da cozinha. No pote – onde há sempre ração que ela não quer.

Quando estamos à toa na sala, ou se chove forte, ela encontra seu espaço embaixo de uma cadeira alta que tem lá; bem perto da porta. Deita-se por ali e, a seu modo, participa da conversa.

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Quando minha sogra sai para caminhar, Magal acompanha-a. Não a segue, vai à frente. E para de quando em quando para espreitar “a dona”, que segue distante em passo de gente. Se vamos à casa de alguém para uma conversa na varanda, ela ajeita-se num canto qualquer junto a nós. Quando estamos à toa na sala, ou se chove forte, ela encontra seu espaço embaixo de uma cadeira alta que tem lá; bem perto da porta. Deita-se por ali e, a seu modo, participa da conversa. Segue o seu trabalho de conquista. Nesse ritmo, não demora, será a senhora de toda a casa.

A gente não sabe, eu tento imaginar, os percalços e dissabores sofridos pela Magal. Filhote não é, seu focinho fino começa a branquear. Cadelinha miúda, magra e ligeira como quê, crescida na rua… Será mesmo? Eu fico imaginando se, meiga como é, não terá tido casa e quem olhasse por ela. Traumas tem. Se caminho distraído na sua direção, quando no tapete à porta da cozinha, ela salta. Reage instintiva à ameaça iminente. Parece, está sempre alerta. E treme. Há dias que treme, a coitada. Não sei se de frio ou de emoção, quando recebe um afago. Tão destemida a latir e avançar sobre as rodas em movimento, e tão frágil face a um carinho.

A cidade está, assim, cheia de cães. Vêm de todo canto. Vêm das roças e vêm das cidades vizinhas, largados que são nas estradas. Trazem doenças, lógico que trazem. Depois de anos convivendo com matilhas soltas pelas ruas, suspeito, a população vai acordando para a necessidade de fazer algo, e não esperar tanto a ação das autoridades que, também elas, têm dificuldade para lidar com a questão: matar nem pensar; soltar nas estradas como fazem por aí, não é razoável; vacinar, castrar e dar abrigo, suponho, faltam recursos. Aos poucos, os moradores e comerciantes tomam essas iniciativas. A Magal foi vacinada, castrada, tem quem a alimente, tem um canto para dormir e até banho tem; muito de vez em quando.

Outros vira-latas têm sorte diferente. Há quem os adote completamente e há, nalgumas ruas, quem distribua ração e ponha água na porta de casa. Alimentados estão. Falta, à maioria, refúgio e proteção. E carinho também. Falta responsabilidade e compromisso dos que pegam os filhotes para criar. E falta, nas prefeituras e câmaras municipais, quem tenha vontade de resolver esse nó: mobilizando a população, criando e divulgando campanhas de esclarecimento, liderando os esforços conjuntos para dar acolhimento a tantos cães abandonados.

Justo quando estou no finalzinho da crônica: ô Donh´Iaiá, a senhora arrumou um cachorrinho, né?, diz a conhecida que, achegando-se ao portão, puxa conversa. Ouvi a resposta: não, num é minha não. Apareceu por aí e foi ficando…

 

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