Osvaldo Alvarenga: Surpreso na Beira

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É impossível deixar de observar a contribuição dos sefarditas na formação da nacionalidade portuguesa

POR OSVALDO ALVARENGA*

Gosto de história. Encanta-me a história de Portugal, país com quase 900 anos, nação construída da miscigenação de diversos povos e da sobreposição de várias culturas. Nesse contexto, é impossível deixar de observar a contribuição dos sefarditas na formação da nacionalidade portuguesa. Não à toa, em viagem por Terras da Beira, deixo as rotas mais celebradas: do vinho, do azeite, das aldeias históricas; deixo as paisagens das serras da Estrela, da Marofa e da Malcata; deixo as praias, piscinas e cascatas dos rios Mondego, Côa e Zêzere; deixo tudo em segundo plano para percorrer as judiarias medievais, desde Castelo Branco até as praças-fortes raianas da Guarda, Belmonte, Covilhã e Sabugal; inclusive Sortelha, onde não há judiaria, mas fortaleza do séc. XII, castelo e burgo medieval no topo de um monte, onde tudo é de granito, muralha, casas, torres e chão, bem preservados, e justo no caminho entre as cidades, o que justifica a visita.

No dia 31 de março de 1492, os Reis Católicos, Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, assinaram o Decreto de Alhambra que concedia aos judeus o prazo máximo de quatro meses para converterem-se ao cristianismo ou deixarem o reino. Os números não são exatos, em todas as hipóteses, são expressivos: o historiador Damião de Góis (1502-1574), quase contemporâneo aos fatos, escreveu que foram 20 mil as famílias judias que migraram para o Reino de Portugal e dos Algarves onde havia maior tolerância ao povo de Israel; o arqueólogo Abade de Baçal (1865-1947) estimou em 40 mil o total de imigrantes; o arqueólogo e etnógrafo Adriano Vasco Rodrigues (nascido em 1928) calculou em 100 mil; o historiador Lúcio de Azevedo (1855-1933) defendeu a tese de que foram 120 mil e Joseph Pérez (1931-2020), historiador francês especializado no tema, defendeu que 200 mil judeus aceitaram a condição imposta pelos monarcas e converteram-se, enquanto 40 a 100 mil atravessaram a fronteira. Acontece que, por censo encomendado por D. João II, em 1495, viviam no reino pouco mais de um milhão de pessoas, e se antes do êxodo as judiarias já eram muitas, populosas e frequentes por todo o território português, com a chegada dos novos habitantes a desproporção entre sefarditas e as populações cristã e muçulmana passou a ser um problema difícil de administrar.

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Muitos dos desterrados esperavam poder retornar em breve às próprias casas em Castela, Leão e Aragão, por isso optaram por viver nas aldeias raianas, sobretudo nas Beiras. Em nossa viagem pela região, Iêda e eu, passamos parte do primeiro dia a visitar Castelo Branco e sua judiaria, ao entardecer, famintos e cansados chegamos em Covilhã, onde permanecemos por cinco noites numa Pousada de Portugal, a 1.200 metros de altura, ao meio do caminho entre a cidade e a Serra da Estrela. À chegada, consulto as indicações de viagem, onde comer, e sigo com o carro pelas ruas apertadas na velha cidade. Estaciono não sei como, de primeira, numa ladeira estreita. Restaurante escolhido: A Taberna da Laranjinha. As ruas não estão desertas; nem cheias. Há vida nas esplanadas. Na viela tortuosa, essa sim vazia, são as andorinhas que dão vida, gazeiam aos bandos. Chegamos. No restaurante ainda fechado, recorro ao funcionário que passa apressado: “tens reserva?”; ele pergunta. “Não temos”; respondo eu. Ele faz caras, entra, vai ver o que se pode arranjar, afinal, somos só duas pessoas. “Olha, querem ficar na esplanada, tenho aqui uma mesa”; disse outro que veio ter conosco, o patrão, descobri depois.

Não achamos mau. Sentamo-nos mesmo à frente da tabuleta com a ementa: bombons de fumados, ovos rotos da taberna com presunto serrano e tomate cherry; Braz de alheira; o bacalhau e a horta, tataki de atum em crosta de sésamo, puré de abacate e citrinos; pastel de molho de Covilhã; pernil de borrego 8 horas com aromáticos; bife à taberneiro e bife à pastor; entrecôte de novilho simplesmente grelhado, azeite Cova da Beira Extra Virgem aromatizado; lombinho à baixa temperatura mais alguma coisa, sopa fria de melão não sei o quê; cogumelos salteados, caldo verde, e outras carnes, e outros peixes e bacalhaus. Perdidos, a Rute, bendito o nome, amiga, veio nos auxiliar: “é para picar. Podem escolher vários pratos e partilhar”. Assim fizemos, escolhemos cinco, a Rute disse que eram mais que o suficiente, sugeriu o vinho branco, ali da zona, refrescante e com algum corpo, Quinta dos Currais, que bebemos e caiu muito bem. Os pratos foram saindo, uns melhores que outros, todos deliciosos. Comemos demais e ainda precisávamos de espaço para a sobremesa: requeijão com doce de abóbora e farofa de amendoim; simplesmente divino. Surpresa absoluta que houvesse em Covilhã um restaurante com pratos tão sofisticados. Voltamos outras duas vezes. Terminamos tarde para caminhar e ver qualquer coisa da cidade como eu havia programado. Ficou para o dia seguinte.

Por iniciativa do Marquês de Pombal, desde 1764 até os anos oitenta do séc. XX, Covilhã foi um importante centro industrial de lanifício e tecelagem. Hoje vive muito em função da Universidade da Beira Interior e do turismo de inverno. A presença dos judeus na cidade remonta ao séc. XII. A judiaria encontrava-se dentro das muralhas, porém, segundo planta quinhentista, depois do êxodo de Castela, Leão e Aragão, avançou para fora e chegou a ocupar 30% da zona urbana. As casas, em estilo medieval, de dois ou três pisos, com a porta grande e a porta pequena, no rés-de-chão a loja ou a oficina e acima a habitação, coladas umas às outras, contíguas às antigas muralhas, no proveito do paredão, a formar sinuosas vielas, adaptadas ao terreno, na vertente da montanha, iam desde a Porta de São Vicente até às Portas do Sol, entre as atuais ruas das Flores, do Ginásio Clube, rua, beco e travessa da Alegria, entre o mercado municipal e o pelourinho, às portas das igrejas de São Silvestre, São Tiago e São Pedro. No número 29 da rua das Flores e no 39 da rua do Ginásio Clube, as casas com janelas manuelinas, talvez fossem, duas entre outras, que nos séculos de Inquisição, guardavam passagens secretas à sinagoga.

Corremos, ou tentamos correr, tudo aquilo. Mas em Covilhã, na arcaica cidade de Covilhã, o WOOL chama a atenção e desvia o foco do amante de história entusiasta das artes: é um festival, realizado há anos, que conta a história da lã na cidade, desde o ofício do pastoreio, à industrialização, os operários das fábricas; e inclusive, até, talvez, se bem procurar, a contribuição dos cristãos-novos na cultura local, tão associada à produção e ao comércio da lã, tudo em forma de grafite, arte de rua, em grandes e pequenos painéis, em vistosas e discretas obras, espalhadas entre ruínas, muros e velhas construções.

Seguindo o nosso roteiro, no outro dia, fomos a Sortelha, já disse o porquê, visita imperdível. Apesar de pequena, passamos lá toda a manhã. E em Sabugal, vila que fez parte do Reino de Leão, integrada ao Reino de Portugal em 1297, chegados à hora do almoço, encontramos fechado o castelo, que, de fora, impressiona: proeminente sobre o rio Côa, plantado num outeiro da Serra da Malcata, altas muralhas de pedra, quatro torres de defesa e mais a torre de menagem em formato pentagonal. Dentro, parece, resta nada. No séc. XIX, alguém achou que o castelo servia bem para cemitério, e toda a praça de armas, incluindo, mais tarde, uma igreja, foram demolidas. A vila medieval, judiaria inclusive, é pequena, torre do relógio, de 1641, Centro Interpretativo da Memória Judaica e pouco mais para ver.

O passeio ainda vai longe. Faltam dias para o regresso a Lisboa. Por ora, o registro da gastronomia, das construções de pedra e dos painéis grafitados em cidade tão antiga foram as marcas desta viagem. Hoje, porém, em Lagos, com família à volta, desejo de convívio, resta-me pouco tempo para escrever – suponho, você também não há de querer uma crônica imensa. Retomo essa história em quinze dias.

***

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Osvaldo Alvarenga*

Osvaldo reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.
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