Os loucos anos 20 – por Osvaldo Alvarenga*

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A gente lê, ouve e vê tanta loucura na internet que fica difícil dizer se é o acesso fácil à informação que faz o mundo, hoje, parecer mais agreste ou se, acostumados a ler, ouvir e ver tanta maldade, alargados os limites e copiados os modelos, nós estamos, de fato, tornando tudo à nossa volta ainda pior. Ou terá sido sempre igual, mas só os que sentiram na pele é que sabem… e muitos, passados os anos, deixam-se esquecer? O terror envenena, a nostalgia inebria e o exemplo perverte. Que anos são esses em que vivemos? 

À luz da ciência, no conjunto de indicadores objetivos, a humanidade nunca esteve melhor. No nosso século, comparado aos anteriores, a expectativa de vida na Europa dobrou entre 1800 e hoje; em média, vivíamos até aos 40, agora já passamos dos 80 anos. E há menos fome. Na década de 1870, segundo dados do portal Our Word in Data, morreram de inanição 1.426 pessoas para cada 100 mil habitantes na Terra; até onde se sabe, a maior mortandade por fome da história. Na década passada, deixamos morrer à míngua três pessoas para cada 100 mil no planeta – com as mudanças climáticas a fome voltará a crescer. Mas, hoje, não trato desse tema. Não é por aí que eu vou. Nos nossos dias, a delinquência mata muito mais do que as guerras. Um estudo publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime mostra que, em 2017, mundo afora, morreram 89 mil pessoas em conflitos armados, enquanto 464 mil foram vítimas de homicídios. São números modestos quando comparados aos quase 9 milhões de mortes por doenças cardíacas, ou aos mais de 6 milhões de vítimas de AVC, ou, até aqui, aos 2,84 milhões finados pelo Covid-19. A pandemia trouxe horror, melancolia e mais expôs as desigualdades da nossa sociedade.

Em artigos que li ao longo desta semana, cientistas sociais americanos encontram semelhanças entre o nosso comportamento hoje, impactados que estamos pelas crises sanitária e econômica causadas pela pandemia, e o estarrecimento, devoção, controle financeiro e privação, comuns há 100 anos, impactados que estavam os nossos avós em consequência da gripe espanhola, que infectou cerca de um quarto da população do planeta, e do desfecho da Grande Guerra. Por isso, preveem alguns, estamos em vias de entrar num novo período de disrupção como aquele que marcou os Loucos Anos 20. 

F. Scott Fitzgerald, consagrado cronista daquela década, em novembro de 1931, portanto, após o crash da Bolsa de Nova York que pôs fim aos “anos felizes” e marcou uma nova era de repressão e retrocessos, descreveu num ensaio mordaz, Echoes of the Jazz Age, aquela que “Foi uma época de milagres, foi uma época de arte, foi uma época de excesso, e foi uma época de sátira.”   

Foram anos de descompressão, de revolução social, de avanços no direito das mulheres e dos trabalhadores, de alguma tolerância aos encontros homoafetivos; anos de transformações dos costumes, da moda, da arquitetura, das artes; de florescimento de novas tecnologias, com a generalização da energia elétrica, do cinema, do rádio, do automóvel, do trator agrícola; de expansão da cultura de massas. Nos Estados Unidos, foram anos da Lei Seca, dos gangters, o período áureo das máfias e de muita corrupção também; e foram, sobretudo, anos marcados pela euforia, glamour, cinismo, hedonismo, desvario e… pelo Jazz: “A palavra jazz em seu progresso em direção à respeitabilidade significou primeiro sexo, depois dança e, em seguida, música. Está associada a um estado de estímulo nervoso, não muito diferente daquele das grandes cidades atrás das linhas de uma guerra.

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Primeiro a Grande Guerra, depois a gripe espanhola. Na América, expansão econômica. Na Europa o caos. O mundo em rearrumação. Jovens soldados retornados dos campos de batalha, rapazes e moças crescidos, contidos e asfixiados por anos tão pesados, foram eles a centelha para a explosão que veio então: “Mal os cidadãos mais sisudos da república recuperaram o fôlego, a mais selvagem de todas as gerações, a geração que fora adolescente durante a confusão da Guerra, bruscamente empurrou meus contemporâneos para fora do caminho e dançou para os holofotes. Essa foi a geração cujas meninas se dramatizaram como melindrosas, a geração que corrompeu os anciãos e, eventualmente, acabou se superando menos por falta de moral do que por falta de gosto.

Mas por pouco tempo: “A sequência foi como uma festa infantil invadida pelos mais velhos, deixando as crianças confusas e bastante negligenciadas e bastante perplexas. Em 1923, os anciãos, cansados de assistir ao carnaval com maldisfarçada inveja, descobriram que mais bebida podia compensar os anos a mais e, num regozijo, a orgia começou. A geração mais nova perdeu o estrelato.

A mecanização nos campos expandia a produção e transferia mão de obra para a indústria e para a construção civil. A fome despachava europeus para todo o mundo, muito mais para as Américas. Os avanços tecnológicos produziam prosperidade e oportunidades para os mais audaciosos. Em 1922, Gago Coutinho e Sacadura Cabral saíram de Lisboa num hidroavião e, após oito escalas e 79 dias de viagem, chegaram ao Rio de Janeiro. Anos depois, Charles Lindbergh foi de Nova York a Paris na primeira travessia do Atlântico sem escalas: “Na primavera de 27, algo cintilante e estranho cruzou o céu. Um jovem de Minnesota, que parecia não ter nada a ver com sua geração, fez uma coisa heróica e, por um momento, nos country clubs e nos botecos clandestinos, as pessoas largaram os seus copos e pensaram nos seus velhos e melhores sonhos. Talvez houvesse um jeito de sair voando, talvez nosso sangue inquieto pudesse encontrar fronteiras no céu ilimitado. Mas àquela altura estávamos todos bastante comprometidos; e a Era do Jazz continuou; todos nós precisávamos de mais um trago.” 

Na visão de Fitzgerald, os Loucos Anos 20 terminaram melancólicos, da euforia à ressaca; e, ao obsoleto, à nostalgia: “Agora, mais uma vez, o cinto está apertado e evocamos a mais convincente expressão de horror ao voltar o olhar para a nossa juventude perdida. Às vezes, porém, há um rumor espectral nas percussões, um sussurro asmático nos trombones que me leva de volta ao início dos anos vinte, quando bebíamos álcool de madeira e todos os dias, em todos os sentidos, ficávamos cada vez melhores (…) – e tudo parecia róseo e romântico para nós, que éramos jovens então, porque nunca mais sentiremos assim tão intensamente o que está à nossa volta.”

É cíclico. Como ondas que vêm e vão, com avanços e retrocessos, em alternância entre expansão e contração, progredimos… Depois dos anos 20, foram os anos 50 e 60, então, deste eu me lembro bem, do final dos anos 90 até 2008. Agora, aparentemente, vem aí, já forte a partir deste ano na Índia, China, Sudeste Asiático e Estados Unidos, depois mais ou menos por todo o mundo, um novo período de prosperidade. Serão loucos anos? Eu não sei. Gostava que fossem os melhores de sempre.


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