Vergonha de voar – Crônica de Osvaldo Alvarenga*

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Passamos o natal de 2018 a bordo de um barco em Halong Bay, no Vietnã. O lugar é deslumbrante: baía salpicada por milhares de ilhas com formatos vários, montes cobertos de mata que parecem flutuar sobre o mar cor de esmeraldas e ganhar as alturas. É um dos principais pontos turísticos do Sudeste Asiático. Fica a três horas de carro de Hanoi. Por isso, a maioria dos turistas prefere os passeios do tipo bate-volta. Mas há opções melhores. A Iêda e eu optamos pelo pernoite no barco. Tivemos a sorte de escolher um pequeno, o Majestic, com apenas doze cabines. A tripulação organizou uma recepção especial, uma pequena festa, muito simpática, com ceia singular, para nos acolher naquela noite. E foi entre desconhecidos – umas vinte e poucas pessoas; holandeses, americanos, taiwaneses, franceses e vietnamitas – que passamos o natal em 2018. Guardo boa lembrança daquela consoada.

São relativamente poucos os barcos que ficam para o pernoite. Minto. Não é que sejam poucos, a baía que é grande. Tanto que, durante a noite, e ao nascer do sol, em paz entre as rochas flutuantes, não havia, ou quase não havia, vizinhos à volta. Víamos luzes aqui e acolá; e, ao alvorecer, ouvimos o burburinho que vinha do barco que passou perto. Mas depois, muito cedo, cruzamos com alguns outros, e, quanto mais avançava a manhã, chegavam mais e mais barcos, em quantidade. Logo, à nossa volta, centenas deles. Tantos que, apesar da imensa baía, diversos fundeados muito próximos, foi enorme a algazarra. Barulho de multidão. Buzinas. Do alto dos duzentos degraus que levam ao mirante, na ilha Ti Top, ponto central do passeio, vista panorâmica para a baía, o que vi e ouvi, o incontável número de barcos, multiplicado por não sei quantas dezenas de turistas que cada um leva, todos os dias, para aquele frágil ecossistema, tive, acho, uma revelação. Foi a primeira vez que senti um grande constrangimento por participar daquele evento: turismo de massa, fascínio e consumismo inconsequente destes nossos tempos. 

Faço mea culpa. Pequei muitas vezes; por atos e omissões. Sei que o excesso de turismo superlota e sobrecarrega as cidades, causa a gentrificação, esgota o meio ambiente e danifica os patrimônios naturais e culturais mundo afora. Em Veneza, Barcelona, Paris, Manhattan, e mesmo em Lisboa, a supervalorização dos imóveis já expulsou, para fora das áreas turísticas, boa parte dos habitantes locais. Estão superlotados o Taj Mahal, na Índia; o Stonehenge, no Reino Unido; a Muralha da China, em Pequim; a cidade inca de Machu Picchu, no Peru; as ruínas de Teotihuacán, no México; as ilhas Phi Phi, na Tailândia, a da Páscoa, no Chile, e os Galápagos, no Equador. A vibração, causada pelo excesso de gente, está abalando as estruturas do Partenon, na Acrópole de Atenas; de Petra, na Jordânia; e do templo de Angkor Wat, no Camboja. O calor e a umidade dos visitantes degradam as pinturas na Caverna de Lascaux, em França e na Capela Sistina, em Roma. Turistas e guias poluem o Monte Everest, no Nepal; as praias do Morro de São Paulo, na Bahia, e os canais do Kerala Backwaters, na Índia. Ameaçados pelo clima, estão desaparecendo a Grande Barreira de Corais, na Austrália, e os atóis e recifes que formam o Quiribáti, no Pacífico; secando o Mar Morto entre Israel e a Jordânia; submergindo as Maldivas, no Índico… a lista é enorme. Eu sei de tudo isso, mas sofro com as tentações: gosto de viajar. Quero ver o que não conheço.

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Por causa da nossa frivolidade, consumismo, agressão voluntária e exploração, os oceanos estão quentes como a humanidade nunca viu.

Por causa da nossa frivolidade, consumismo, agressão voluntária e exploração, os oceanos estão quentes como a humanidade nunca viu. É como se bilhões de bombas, como as de Hiroshima, tivessem explodido no mar ao longo dos últimos 25 anos. No ártico, o inverno já não é suficiente para repor a neve e o gelo perdidos no verão; na Groenlândia, as geleiras encolheram a um ponto irreversível. A Terra reclama. Não ouço. As consequências são a elevação do nível do mar, as mudanças nas correntes marinhas e no padrão dos ventos. A Terra reclama mais alto: são mais frequentes e extremos os tufões e furacões, as ondas de frio e de calor, as secas e os temporais, há mais incêndios e alagamentos. Quem ouve? Somos todos agentes dessas mudanças e vítimas delas. É assimétrico. Uns usufruem muito para que outros sofram mais. 

São pensamentos que vêm à minha cabeça enquanto leio sobre flygskam. A expressão, cunhada na Suécia, é de 2018. Quer dizer algo como “vergonha de voar”. Quem deu o primeiro impulso contra as viagens de avião foi o atleta olímpico Bjorn Ferry. Depois, com o ativismo da Greta Thunberg, o movimento ganhou o mundo. E cresce. Não por coincidência, antes da pandemia, houve queda de 5% no número de passageiros nos voos da SAS, ao mesmo tempo que, na SJ, companhia ferroviária, houve número recorde de passageiros. Ambas empresas suecas. A razão da permuta é clara, segundo a Agência Ambiental Europeia, viajar de trem é vinte vezes menos poluente do que de avião. Alerta ligado, as companhias aéreas buscam alternativas: equipamentos mais econômicos, menos poluentes, e programas de compensação de carbono. Com o vírus, o hiato. Agora a aviação comercial luta pela sobrevivência. Já as companhias ferroviárias europeias agradecem. Os trens noturnos, aqueles com leitos, quase totalmente vencidos pela concorrência dos voos low cost, vivem um renascimento. Na Suécia, na Áustria e na França novos investimentos estão sendo anunciados e feitos. Com a pandemia, a tendência foi acelerada. Dada a provação, o que faço eu?

Pondero. Os seguidores do movimento flygskam pregam nunca mais pôr os pés num avião. É simbólico. Depois de tudo que sabemos sobre os gases de efeito estufa, opor-se ao avião representa solidariedade para com os mais atingidos pelo clima, compromisso com as gerações futuras, altruísmo, coerência, disposição à mudança, engajamento às causas climáticas e defesa dos patrimônios naturais e culturais do planeta. Por isso a “vergonha de voar”. Poderia ser “vergonha de consumir produtos animais” ou “vergonha de comprar em excesso”. Há muito do que envergonharmo-nos. Gosto do alerta. Reprovo o absolutismo da premissa. Penso nos efeitos econômicos: o Conselho Mundial de Viagens e Turismo estima que, no mundo, um em cada dez trabalhadores depende do turismo. Penso também que, conhecer terras e culturas diferentes contribui para aumentar a tolerância e a solidariedade entre os povos, e para abrandar o preconceito. 

Halong Bay é deslumbrante, um lugar fantástico. A cidade de Angkor e Fernando de Noronha também são. Podendo, como não ir conhecer? Como abdicar da Capela Sistina ou de Machu Picchu? Vivi dois anos em Salvador, adoro a Bahia, seu povo e sua gastronomia. Sou mineiro exilado em Lisboa. Adoro Minas e adoro Portugal; tenho amigos queridos deste e daquele lado do Atlântico. Não consigo imaginar a minha vida sem voltar a esses lugares e abraçar as pessoas que eu gosto. É preciso muita convicção para tanta renúncia. Será que me falta empatia com os refugiados do clima?  Será egoísmo meu? Será pura frivolidade? Oxalá eu tivesse mais certezas.

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