Onde o mar foi domado, os vinhos ganharam mineralidade e as ostras viraram tradição
Quando se fala da Holanda, muitos pensam apenas em Amsterdã, tulipas, bicicletas e na famosa “laranja mecânica”. Mas a Holanda vai muito além disso. Existe uma outra Holanda — feita de ilhas, pontes, mares domados e sabores intensos. Essa Holanda vive em Zeeland e em outras regiões ainda pouco conhecidas do grande público.
Por Waleska Schumacher, junho de 2025. Haia, Países Baixos
Nesta oportunidade, vamos falar sobre Zeeland, localizada a cerca de duas horas de Amsterdã — uma província formada por ilhas e penínsulas no sudoeste do país, muitas das quais foram literalmente ganhas do mar. Após a grande enchente de 1953, o governo iniciou um dos projetos de engenharia mais impressionantes do mundo: o Delta Works. Composto por diques, comportas e barragens, esse sistema protege as áreas mais vulneráveis do país e, ao mesmo tempo, mantém o equilíbrio ecológico da região.
Muitas das vinhas da província estão abaixo do nível do mar. E é justamente essa relação entre o mar e a terra que define o caráter dos vinhos de Zeeland.
Zeeland é um dos pontos dos Países Baixos onde, durante as estações de primavera e verão, o turismo floresce — principalmente com visitantes holandeses, alemães e belgas que vêm em busca não só do ambiente oceânico, mas também da natureza preservada e dos produtos artesanais locais. Tudo isso é valorizado por quem busca qualidade, autenticidade e tranquilidade.

De Kleine Schorre: vinhos com sotaque marítimo
Em Dreischor, no coração de Zeeland, está a vinícola De Kleine Schorre. Fundada em 2001, em colaboração com a renomada vinícola luxemburguesa Cep d’Or, é hoje uma das maiores da Holanda, com 14 hectares.
A vinícola trabalha com variedades típicas das regiões frias da Europa Central, como Rivaner, Auxerrois, Chardonnay, Pinot Blanc e Pinot Gris, que se adaptaram muito bem ao terroir salino e mineral da região. Localizada a apenas 0,6 metros acima do nível do mar, a Kleine Schorre cultiva suas uvas praticamente ao lado do mar — e é justamente essa proximidade que imprime aos vinhos uma mineralidade viva e uma leve salinidade, características marcantes da região.
Seus vinhos são frescos, vibrantes, com uma acidez que convida à mesa e harmoniza perfeitamente com frutos do mar — não por acaso, muitos de seus rótulos acompanham as refeições a bordo da KLM, representando a Holanda nos céus.
A vinícola também mantém um forte compromisso com a sustentabilidade: parte da energia utilizada vem de fontes renováveis, e a colheita é feita à mão com o apoio de voluntários locais — fortalecendo o vínculo entre vinho, terra e comunidade.
Pensando na valorização do enoturismo, a propriedade oferece uma estrutura completa de hospitalidade. Para quem deseja ficar mais tempo, há uma área reservada para camping, bastante procurada por visitantes — especialmente alemães — durante o verão.
No próprio local, é possível desfrutar de aperitivos e pratos leves no restaurante da vinícola, em um ambiente acolhedor entre os vinhedos. Uma excelente forma de começar o passeio antes de seguir até a costa de Yerseke.
Yerseke: tradição de ostras e mexilhões

Seguindo viagem até Yerseke, o mar volta a se manifestar — dessa vez, na forma de tradição gastronômica. A vila é o centro da produção de ostras e mexilhões da Holanda, além de ser um dos maiores polos exportadores desses moluscos na Europa. Também abriga grandes tanques de armazenamento, onde chegam ostras de outras partes do continente, como Irlanda e Escócia.
A empresa familiar Oesterij, da família Dhooge, cultiva mariscos desde 1906, hoje sob o comando da quarta geração. Suas áreas de cultivo estão espalhadas por diferentes corpos d’água da região: Oosterschelde, Grevelingen, Veerse Meere Waterdunen — cada um contribuindo com características únicas de sabor para os mariscos.
“Cada área cria um sabor único nas nossas ostras.” – Oesterij
No Oesterij, instalado em um antigo armazém que também funciona como museu, o visitante pode conhecer a história do cultivo, experimentar diferentes variedades de ostras, adquirir produtos frescos ou até fazer uma degustação na sala de provas.
Minha recomendação? Não deixe de provar a sopa de ostras, feita com a própria água do mar — um sabor intenso, puro e salgado como a própria Zeeland.
Para continuar a experiência, recomendo visitar o restaurante Oesterproeverij Pekaar, onde a proposta é mais ousada e criativa. Ostras com wasabi, gin tônica e outras combinações surpreendentes são harmonizadas com vinhos da Kleine Schorre. A gastronomia do Pekaar é variada, oferecendo um menu completo que vai muito além das ostras.

O mais interessante é que cada lugar possui sua própria autenticidade. Não competem entre si — oferecem vivências complementares que, com um bom planejamento, tornam o passeio ainda mais memorável. São destinos concorridos na alta temporada, então vale a pena se programar com antecedência.
Preciso confessar: nunca fui fã da textura da ostra crua. Mas com um leve cozimento no vapor, a textura se transforma, sem perder o sabor original. É assim que consigo apreciá-la — em Zeeland ou, com saudade, nas praias de Florianópolis, em lugares como o Ostradamus, onde também desfruto desse prazer marítimo.
O sal que vem do mar: Zeeuwsche Zoute com Zeekraal

Para quem gosta de levar um pouco de sabor local para casa, vale conhecer o Zeeuwsche Zoute, um sal artesanal colhido diretamente do Oosterschelde, a mesma fonte que banha os criadouros de ostras e mexilhões de Yerseke. A versão com Zeekraal (salicórnia) adiciona notas vegetais e levemente salgadas, refletindo perfeitamente o terroir marítimo de Zeeland.
Mais do que um tempero, ele é uma extensão da paisagem — concentrando em cristais tudo o que o mar e o vento da região têm a oferecer. Ideal para finalizar peixes, ostras ao vapor e até pratos vegetarianos com toque salino.


Quando ir?
A melhor época para visitar Zeeland vai de junho a setembro, quando os vinhedos estão no auge, os restaurantes servem mexilhões frescos e o sol de verão ilumina as pontes e canais da região.
Mas preciso dizer: eu também gosto muito de visitar Zeeland nos dias frios do inverno.
Mesmo fora da alta temporada das ostras, que se encerra no fim do ano, ainda é possível aproveitar até fevereiro a temporada dos mexilhões, que são um dos meus frutos do mar preferidos. Em dias mais silenciosos e gelados, a região revela uma beleza serena — perfeita para quem quer saborear com calma e contemplação.

Descubra outra Holanda
Zeeland mostra que a Holanda não é apenas Amsterdã ou tulipas. É também mar, engenharia, história e sabor. É um território onde o ser humano enfrentou o oceano com inteligência, mas respeitou seus ciclos e seus dons.
Os vinhos de Dreischor e as ostras de Yerseke são testemunhos vivos dessa convivência — e um convite para quem quer descobrir um país além dos clichês.
Descubra Zeeland com todos os seus sentidos.
Deixe o vento salgado tocar o rosto, prove um vinho que carrega o mar e ouça a história de uma terra que nasceu da coragem.
*Waleska Schumacher – Jornalista, escritora especializada em vinhos e membro da FIJEV (Fédération Internationale des Journalistes et Écrivains des Vins et Spiritueux) – Acesse: https://waleskaschumacher.com/
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