Cruzeiros Marítimos: uma análise jurídica por Vladimir Passos de Freitas*

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Os cruzeiros marítimos pela costa brasileira, estendendo-se até o Uruguai e Argentina, vêm se tornando cada vez mais numerosos. Partem de diversos estados, com saídas de portos que apresentem condições de receber as enormes cidades flutuantes e que demonstrem um potencial significativo de consumidores. Os cruzeiros estendem-se no período entre novembro e abril de cada ano, com muitos navios em operação. Sete companhias operam no Brasil, sendo a MSC Cruzeiros a líder no mercado, atuando com seis navios, seguida pela Costa Cruzeiros com cinco.

Os chamados “gigantes do mar” possuem restaurantes, academia de ginástica, spa, espetáculos de música, teatro, discoteca, cassino, piscinas e, em alguns, um calçadão que permite passeios olhando vitrines. O maior deles é o Symphony of the Seas, da Royal Caribbean, que abriga 6.800 hóspedes, oferecendo tudo o que se possa imaginar, inclusive pista de patinação no gelo [1]. O Brasil não está incluído na sua rota.

Essas enormes embarcações, somados passageiros e tripulantes, são maiores do que muitos municípios brasileiros, movimentam milhões de reais, inclusive nos locais onde atraca (hotelaria, transporte, alimentação e outros são utilizados pelos passageiros). Tudo isso, evidentemente, origina uma série de situações jurídicas especiais, as quais merecem uma análise específica. É o que aqui se fará.

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a) Crimes cometidos a bordo do navio
Não é possível imaginar que em uma viagem com milhares de pessoas não existam desavenças. Os motivos podem ser ocasionais, como alguém não respeitar a fila no restaurante, ou mesmo a eclosão face a uma relação preexistente. No rol de infrações, lesões corporais (inclusive da Lei Maria da Penha), apreensão de drogas, injúria, assédio sexual e até homicídio [2], este, por óbvio, raríssimo.

Em ocorrendo uma infração penal, o comandante do navio é a autoridade máxima para tomar as decisões. Ele não procede investigações detalhadas, limitando-se a registrar a ocorrência. Se houver ferimentos, o médico de bordo emitirá um laudo, ainda que informal. Não há cárcere nos navios de turismo, em casos extremos o acusado será trancafiado em uma cabine.

No Brasil, a competência para julgar um crime cometido a bordo de navio é da Justiça Federal, conforme artigo 109, inciso IX, da Constituição Federal. Assim, no caso de brasileiros, pouco importa se ele foi cometido no porto, no mar territorial ou em águas internacionais (conforme complementa o artigo 7º, II “c” do Cód. Penal). Porém, imagine-se que ele ocorra quando o navio está em território estrangeiro. Nessa hipótese, a Justiça brasileira só se aplica se no outro país ele não for julgado. Daí será competente a subseção judiciária da Justiça Federal do primeiro porto brasileiro em que o navio tocar, conforme artigo 89 do CPP.

b) Relações de consumo
As controvérsias envolvendo a utilização de produto ou serviço relacionado com a viagem, antes ou durante a sua realização (v.g., da compra de bilhete aéreo à utilização da piscina dentro da embarcação), pode justificar a propositura de ação judicial baseada no Código do Consumidor.

Não são raras as ações judiciais envolvendo alegada quebra de contrato e reivindicando danos morais. As ações ora são propostas contra a empresa de turismo que intermedeia o pacote, ora contra a companhia de navegação e, por vezes, contra ambas. O TJ do Rio de Janeiro oferece um precioso banco de jurisprudência sobre cruzeiro marítimo e dano moral que, muito embora seja de 2018, facilita a compreensão do Direito [3].

Vejamos alguns precedentes judiciais.

Em caso de alteração unilateral do itinerário do cruzeiro, o TJ-SP, com base no Código do Consumidor, condenou a agência de viagens ao pagamento da diferença entre a oferta primitiva e a oferecida, acrescida de danos morais no valor de R$ 10 mil para cada autor [4].

No TJ-PR, a Turma Recursal dos Juizados Especiais julgou recurso em que a empresa de navegação cancelou a viagem seis meses antes, mas, ainda assim, os autores foram de avião até Salvador (BA), visando participar da viagem. A Turma negou indenização no mérito, porém concedeu R$ 2.000 a título de dano moral a cada autor, por conta de o cancelamento ter sido unilateral, sem consulta aos adquirentes [5].

O TJ-MG acolheu reclamo dos autores de cruzeiro que propuseram ação contra empresa de turismo, alegando não terem sido informados de que a entrada no Canadá dependia de visto e, consequentemente, terem sido abandonados no porto de Seattle, EUA, impondo-lhe indenização por dano moral no montante de quase R$ 20 mil por autor [6].

Em suma, há inúmeras ações por diversos motivos, a crise econômica da Covid que interferiu nos cruzeiros, cláusula contratual, extravio de bagagem, atraso no percurso e outros tantos. É flagrante a orientação de todos os Tribunais de Justiça no sentido de julgar procedentes ações em que se pede dano moral.

c) Direitos trabalhistas
Os navios possuem centenas de tripulantes, entre outros, oficiais da Marinha Mercante, médicos, garçons, vendedores, massagistas, cozinheiros, pessoal da limpeza, músicos e artistas de teatro. Todos são admitidos após entrevista e deles se exige o conhecimento básico do inglês. Assim, um navio como o Fantasia, da MSC, transporta 4.800 passageiros e tem em torno de 1.200 tripulantes que trabalham e zelam permanentemente para que as condições de excelência sejam mantidas.

A admissão é feita por meio do exame de currículos e entrevistas, que podem ser intermediadas por agências especializadas de contratação de empregados. Eles são oriundos de países onde a economia não dá oportunidade a todos ou os salários são baixos. Há grande quantidade de brasileiros, centroamericanos, indianos, filipinos e, em menor quantidade, de Madagascar, Ilhas Maurício e outros.

Os salários variam conforme a atividade e são pagos em dólar. Um operador de buffet dos restaurantes que, por exemplo, anota os pedidos e auxilia na preparação de saladas, recebe U$ 900 [7]. Dá-se estímulos e paga-se melhor a quem fala outros idiomas e demonstra produtividade. Por exemplo, um operador de excursões em terra recebe U$ 1,100, mas terá acréscimos na medida em que venda excursões [8]. Não se paga por moradia (dois por cabine) e comida. Casais podem utilizar a mesma cabine, desde que formalmente casados, e há assistência médica. Empregados têm o seu restaurante e local de lazer, sendo-lhes proibido frequentar os lugares dos passageiros. A infração a essa regra significa demissão e a obrigação de deixar o navio no primeiro porto. O regime de trabalho é intenso, mas nos navios de bandeira italiana os brasileiros têm vantagem sobre os demais, face à existência de inúmeros acordos que impõem direitos mínimos, como máximo de horas trabalhadas por dia.

Evidentemente tais normas, celebradas sob as regras do país da bandeira do navio, gera conflitos. Por um lado, os cruzeiros marítimos geram milhares de empregos, pagam salários maiores do que nos países dos recrutados, permite-lhes crescer aprendendo muito sobre administração, idiomas, outras culturas e países. No lado oposto, trabalha-se incessantemente (dez a 12 horas por dia, sem descanso semanal), o que leva alguns a permanecer no navio e descansar quando o navio atraca em um porto, paga-se pela internet, o que dificulta telefonemas para a família, e não há sistema de aposentadoria (muitos brasileiros pagam o INSS como autônomos).

O Judiciário trabalhista vem sendo constantemente chamado a decidir reclamações propostas por tripulantes dessas empresas de navegação turística. A competência local tem sido aceita, contrariando os interesses das companhias de navegação, com base no artigo 651 da CLT, que reconhece a competência do lugar da prestação de serviço, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. Contra esta posição, está o Código de Bustamante (Convenção de Havana), de 1929, que adota em tais casos o foro da bandeira do país do navio. Os TRTs adotam posições diversas e, no próprio TST, há decisões nos dois sentidos. Todavia, ainda que não de forma unânime, prevalece a orientação de aceitar a prevalência da aplicação da legislação brasileira mais favorável [9].

Uma vez adotada esta tese, a procedência das ações trabalhistas é certa, vez que as regras da CLT são mais abrangentes que o contrato de trabalho firmado entre as partes. Neste sentido, a título de exemplo, cita-se acórdão do TRT da 9ª Região (PR), que condenou a vencida ao pagamento de “aviso prévio indenizado de 30 dias; férias proporcionais 2013 com 1/3; 13º salário proporcional; FGTS e multa de 40%” [10].

Surge agora um acréscimo à discussão. A Convenção nº 186 da OIT, que trata sobre o Trabalho do Marítimo, a qual foi referendada pelo Congresso Nacional em 2019 e promulgada pelo presidente da República através do Decreto 10.671/2021. A Convenção é antiga, mas só agora, formalmente, torna-se obrigatória. Resta saber como se inclinará a jurisprudência trabalhista.

Eis três aspectos relevantes dessas “cidades flutuantes” que circulam ao redor do mundo. Conhecê-las, estudá-las e, quem sabe, especializar-se nessa área do Direito, com peculiaridades únicas, pode ser a abertura para novas oportunidades.


*Vladimir Passos de Freitas é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR, desembargador federal aposentado, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça, promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

*Artigo publicado originalmente no Conjur, e autorizado a publicação do autor no DIÁRIO DO TURIMSO


[1] Melhores destinos. Gigantes dos mares: conheça os 10 maiores navios de cruzeiro do mundo! Disponível em: https://www.melhoresdestinos.com.br/maiores-navios-cruzeiro.html. Acesso em 8 fev. 2023.

[2] UOL. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/07/17/ministerio-publico-denuncia-homem-pela-morte-de-colega-a-bordo-de-navio-em-santos-em-2010.htm. Acesso em 9 fev. 2023.

[3] TJRJ, CRUZEIRO MARÍTIMO E DANO MORAL. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/31308/cruzeiro-maritimo-dano-moral.pdf. Acesso em 9 fev. 2023.

[4] TJ-SP, Ap. nº 1017714-25.2015.8.26.0100, 30ª. Câm. Cível. https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/511498045/inteiro-teor-511498064. Acesso em 9 fev. 2023.

[5] TJ-PR, 1ª Turma Recursal, Recurso Inominado nº 0018573-48.2016.8.16.0182. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-pr/835301457. Acesso em 9 fev. 2023.

[6] TJ-MG, 14ª Câm. Cível, APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0439.16.013318-7/002. Acesso em 9 fev. 2023.

[7] No câmbio de 11 fev. 2023 equivalem a R$ 4.693,63.

[8] Nossa UOL. Lucila Runakles. Salário em dólar e pouca folga: como é trabalhar em um navio de cruzeiro, 22/6/2022. Disponível em: https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2022/06/22/brasileiros-contam-vantagens-e-perrengues-em-trabalhar-com-cruzeiros.htm. Acesso em 9 fev. 2023.

[9] TST ARR-11800- 08.2016.5.09.0028, 6ª Turma, relatora ministra Katia Magalhaes Arruda, DEJT 12/04/2019.

[10] TRT 9, RO 39863-2015-015-09-00-1, j. 12 nov. 2019. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trt-9/1568850774/inteiro-teor-1568850776. Acesso em 9 fev. 2023.

 

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