Somos o que somos – por Osvaldo Alvarenga*

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Astrologia e astronomia são saberes gêmeos, nascidos nas origens da humanidade, gestados na contemplação do céu e alimentados pela necessidade humana de conhecer e interpretar os astros. Na Antiguidade, com os gregos, ganharam a companhia inseparável da matemática e, com ela, a cosmologia; nunca mais se separaram. Com os babilônios, o estudo das estrelas foi usado para prever os acontecimentos terrenos. Bem mais tarde, os muçulmanos, alicerçados na astronomia grega clássica, persa e indiana, dominaram a disciplina entre os séculos IX e XII, desenvolveram centros de pesquisa e observação, calcularam a duração do ano, o tamanho da Terra (que já sabiam, não é plana) e a órbita da Lua, aperfeiçoaram o astrolábio e deixaram inúmeros compêndios.
Nos reinos cristãos, ao longo da Idade Média, a Igreja estorvou como pôde o desenvolvimento das ciências. Mesmo assim, reis e imperadores, receosos do porvir, acolheram eruditos, matemáticos, astrônomos e astrólogos, filósofos e profetas, conhecedores das coisas da Terra, do céu e dos astros, como conselheiros para planear o futuro. Subsidiado, o estudo do universo prosperou na Europa. Vários livros foram traduzidos para o latim e, ainda que tenha sido um período de poucas descobertas, modelos foram aperfeiçoados e, herança judia e moura, instrumentos de navegação começaram a ser desenvolvidos. Somente no século XVII, intrigados que foram pelo método científico, os saberes gêmeos separaram-se e seguem por caminhos diversos.
A história é cheia de armadilhas, na Península Ibérica do séc. XV, eminente polo de inovação, passaram os mais célebres eruditos da época. Abraão Zacuto, filho de Abraão, foi um deles. Original de Salamanca, matemático, astrônomo e astrólogo, místico e renascentista, rabino e historiador, professor em três universidades e autor de uma série de compêndios, tratados e crônicas, foi desterrado, em 1492, por decreto dos reis católicos. Na casa dos 40, junto com dezenas de milhares de refugiados, atravessou a fronteira para viver no Reino de Portugal. Em 1493, acolhido na corte de D. João II, foi nomeado astrônomo e cronista real pelo monarca; com a morte desse, em 1495, destacado pelo novo soberano, D. Manuel I, como conselheiro e médico particular do rei, deu invulgar contributo ao desenvolvimento da ciência náutica portuguesa.
A serviço da coroa, Zacuto elaborou as primeiras tábuas de navegação, foi entusiasta e participou da decisão que levou Vasco da Gama às Índias e, para a viagem, projetou o primeiro astrolábio de metal em substituição ao de madeira. Sem as suas tábuas de navegação e sem o seu astrolábio, essenciais ao mapeamento do oceano guiado pelas estrelas, os navegadores portugueses não teriam chegado ao oriente; e nem ao Brasil.
O mesmo D. Manuel I, um ano depois de ascender ao trono, em cumprimento ao acordo que fez com Dona Isabel I de Castela e D. Fernando II de Aragão, seus sogros, também promulgou édito de expulsão de todos os judeus e mouros. Diferente dos castelhanos, ofereceu o batismo para quem quisesse ficar. O Rei buscou conciliar seu compromisso com os reis católicos à carência em Portugal de eruditos, de artesãos e de gente. Fez acordos, concedeu 20 anos para os recém-convertidos abandonarem as suas práticas religiosas, entregou filhos menores de pais não batizados a famílias cristãs, sobretaxou a evasão de bens, fechou portos, fez o diabo para manter no reino os acossados. Ficaram uns tantos, os cristãos-novos que aprendemos na escola.
Tendo recusado o batismo, de novo degredado, Abraão Zacuto viajou para Tunis. E, sem nunca deixar de produzir, teve de fugir uma vez mais. Constantinopla foi seu exílio final. Morreu por volta de 1514, sem ter visto publicada a sua obra mais celebrada: Sefer Hayuhasin, a primeira crônica completa sobre o povo judeu, desde a criação do mundo até o ano de 1500.
Com a diáspora, milhares de mercadores, financistas, navegadores, mestres e artesãos, mouros e judeus, abandonaram a Península Ibérica levando consigo saberes, ofícios, segredos e fortunas. Foram para o Norte da África, para a Península Itálica, para os territórios otomanos e, depois, para as Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, e, mais adiante, para Inglaterra, França, Alemanha, e à frente, para as Américas. Não demorou, os otomanos disputavam com portugueses o comércio marítimo de especiarias vindas do oriente; passadas algumas décadas, os holandeses tomaram territórios na costa da África e do Brasil e avançaram sobre o rentável negócio do tráfico humano. A Península Ibérica perdeu eminência tecnológica. D. Manuel fora avisado por seus conselheiros que seria assim.
O homem da idade das trevas não difere muito do homem pós-moderno. Ainda hoje, o diverso assusta e a intolerância prevalece. Somos o que somos, Cores & Valores, enunciam os Racionais MC’s. Mesmo depois de ter produzido o holocausto, o antissemitismo voltou a crescer na Europa, e a islamofobia não é menor. Às vezes de forma dissimulada, mas sempre presente. Sintomas não faltam. O mais recente, no ocaso de 2020, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que cada Estado-membro é livre para adotar leis que impeçam o abate ritual em nome do bem-estar animal. Em causa a lei aprovada no parlamento belga que proíbe o abate kosher e hallal. Também a Suécia, Dinamarca e Eslovénia adotam restrições semelhantes, e o tema está em debate em outros parlamentos. O tribunal entendeu que a lei não contraria preceitos religiosos, e sim protege o direito dos animais. Sendo assim, resta a judeus e muçulmanos converterem-se a outra fé, adotarem a dieta vegetariana ou emigrar, como foram forçados a fazer bastantes vezes no passado.
Não sei o que é justo. Desconfio do propósito da lei. Deixo para as vacas, cabras e ovelhas dizerem o tipo de execução que melhor assegura os seus direitos. Digo eu que o entendimento do tribunal está cheio de contradições: as touradas são legais; a caça é legal; legal também, e até incentivado por fundos europeus, o confinamento extremo de animais para produção de carne, leite e ovos. Por toda a existência trancados, imobilizados e sem espaço para mexer, não têm bem-estar. Se a decisão do tribunal europeu não serve aos animais, serve a quê?
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